quarta-feira, abril 12, 2006

À escuta das Vozes da Poesia Europeia - VII

Celebrando a feliz edição da revista Colóquio Letras - que traz à estampa, em três cuidados volumes, as traduções que David Mourão-Ferreira fez da poesia europeia.

RUTEBEUF E OS DILEMAS DA MISÉRIA

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Nascido em pleno pesadelo medieval, autor maduro aos 15 anos e corpo cadáver aos quarenta, Rutebeuf sofreu a vida inteira de miséria crónica e anonimato agudo. Isto, claro está, apesar de ter sido ele que praticamente inaugurou a dramaturgia francesa. Não admira pois que encontremos frequentemente nos seus versos os lamentos prolixos, as queixas de má sorte e algumas frágeis e vãs tentativas de conformismo. Na sua lírica de jogral vagabundo, pungente e sincera, denuncia a fealdade e a brutal natureza da sua mulher, a abstinência financeira, as dificuldades criativas, as falhas de memória, o flagelo da velhice (na agreste Europa do Século XIII, as alminhas caducavam mais cedo). No famoso Complainte de Rutebeuf, o poeta partilha com o leitor uma interminável lista de complicações existenciais, penitências do destino, desagravos intestinais, agruras de espírito e penas de amor (um amor sublimado e platónico, bem dentro do imaginário da época). Valente inimigo do triste papa Alexandre VI e da Inquisição francesa, grandessíssimo campeão da Universidade de Paris, autor fundamental na génese da francofonia, peregrino druida do teatro místico europeu, satírico empedernido e competentíssimo trovador, Rutebeuf - o pobre - deixa afinal à posteridade uma herança opulenta:


O JOGO DO INVERNO

Contra o tempo em que as árvores se desfolham
e nos ramos não há nenhuma folha
que não caia por terra;
contra a grande pobreza que me aterra
e que de toda a parte me faz guerra;
Contra o tempo do Inverno
que até me altera o tom dos próprios versos,
começo por caminhos bem diversos
a narrar esta história.
Pobre de senso e pobre de memória,
foi como Deus me quis, pra sua glória...
E quanto a rendimentos
apenas me entregou todos os ventos
que sopram e me gelam neste tempo...

Pobreza foi somente a sua oferta;
e nem tenho outra porta sempre aberta...
Mas no fundo sou rico,
pois Deus me dá o tempo que é preciso;
assim, durante o Verão lá vou cantando,
como a ave no ramo,
e depois, no Inverno, se choro e me lamento,
tenho por companheiro o próprio vento...
De que mais necessito?