quarta-feira, maio 24, 2006
"Não tem muito que saber. É apenas necessário tocar as notas certas no tempo exacto que o instrumento faz o resto."
Johann Sabastian Bach, quando cumprimentado pelo seu virtuoso domínio do cravo.
Confesso que me sinto bastante culpado de um delito que é partilhado pela multidão: no que diz respeito à epistemologia da música, a ideia comum é a de que Barroco é Bach primeiro e Vivaldi depois. Ora, sucede que hoje à noite fui conduzido por um querido amigo à impressionante aventura dos Tafelmusik, uma entidade sonora que se dedica a avisar os incautos acerca da falibilidade dos preconceitos com que interpretamos a música criada nos sécs. XVII e XVIII, ao mesmo tempo que performa um espectáculo verdadeiramente único por uma montanhada de razões, a saber:
• O CCB resolveu presentear Lisboa com um só espectáculo. Este de que falo.
• O Grande Auditório não estava apinhado com os pequeno-burgueses-ávidos-das-festas-da-música. Nem estava apinhado, ponto. Respirava-se!
• Tafelmusik é uma feliz, consagrada e competentíssima orquestra constituída por 18 humanóides absolutamente geniais, que estão alegremente empenhados em que a malta perceba - e valorize - a componente lúdica da música barroca.
• O espectáculo desta noite teve como estrela do norte as maravilhosas "Metamorfoses" de Ovídio, o que só por si é contar bastante, mas, ainda assim, que dizer disto: "Tenho cavernas no flanco da montanha / onde o sol nunca te afligirá."
No entretanto das encantatórias rábulas de Ovídio, estive muito contente e em puro deleite a ouvir obras-primas de Jean-Philipe Rameau, Jean Baptiste Lully, Marian Marais e Alessando Marcello. Vivaldi também constava do reportório, mas Bach, ironicamente, não.
A "Tempestade" de Marais é um momento extra-terráqueo de glória e arte, tanto como a história quasi-homérica de Céix e Alcione para a qual a peça foi escrita. Mas momentos como este, encheram cheinha uma noite perfeita de Barroco.
Hoje, posso dizer que fiquei um bocadinho menos ignorante.