terça-feira, agosto 29, 2006

7 pérolas da Colecção do Dr. Rau.

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2 - GUIDO RENI - David Decapita Golias
1606-1607, óleo sobre tela, 174.5x133 cm.

Por razões de sensibilidade pessoal, esta pérola tem que ser muito bem explicada.
Guido Reni (1575-1642) é um daqueles pintores ecléticos e comprometidos que banalizaram o barroco e, muito sinceramente, não me diz grande coisa. Nascido e criado em Bolonha, é em Roma, a soldo dos papas, que faz o seu melhor trabalho; nomeadamente o fresco de Casino dell'Aurora, nos paços do Palácio Pallavicini-Rospigliosi, que o imortalizou e que nem me aquece nem me arrefece.
Acontece porém que esta representação do velho mito-do-aparentemente-fraco-contra-o-aparentemente-forte é uma coisa, no mínimo, impactante. Para já porque é enorme para além do que pode ser grande uma tela (e esta é-o): o gesto do pequeno David é amplo, o corpo prostrado de Golias é titânico, sem que a diferença de escala nos pareça fictícia (o punho da espada de Golias, nas mãos de David, é muito importante para a conversa).
Além disso, sucede que Guido Reni é uma espécie de antítese de Caravaggio (coisa que não lhe desculpo), fugindo muito das cenografias mais densas, trágicas e lúgubres da bíblia para se focar antes em ambientes metrosexuais, aéreos, pueris e pacíficos, fazendo recurso a uma abordagem classicista que já na sua época se tornava um pouco estafada, mas que rendia ainda sólidos florins. Ora, nesta magnífica obra, abre-se a exepção: o momento é intenso e terrífico. Está-se mesmo a ver que o grandalhão vai perder o sagrado contacto entre a goela e o esófago. A coisa não vai correr bem. Antecipa-se o sangue e vive-se o horror. Mas, acima de tudo, nota-se a ausência da dicotomia herói e vilão, triunfando a lúcida dialéctica entre o derrotado e o vencedor: Golias, indefeso, não parece assim um tipo tão desprezível que mereça este impiedoso fim e David, na sua arrogante púrpura, vai desfechar o golpe terminal sem aparente problema de consciência: está sereno e coradinho, com o joelho convenientemente assente nos rins do gigante, mas sem vestígios de um ódio de morte. Tem até, na sua pequenez de menino cínico, um certo ar profissional.
E é precisamente aqui, neste momento ausente de valores prosaicos, neste gesto suspenso entre a certeza da decapitação imediata e a inutilidade moral da vingança, que está o bichinho danado que me captou e deliciou o olhar.
Pronto, está explicado.