"As Graças procuravam um altar eterno.
Acharam-no na inteligência de Aristófanes."
-PLATÃO-
"Da Condição Humana" chegou-me um motivo de sobra para ter um blog: a inteligência de um contra-argumento notável. Se as fontes que revelam a existência real de Sócrates não são fiáveis porque vêem todas do mesmo e militante esquema ideológico, que dizer de Aristófanes então, um fascista dos bons que combatia as ideias tontas de todo o democrata, especialmente as ideias tontas do democrata Sócrates, que fazia melhor se fosse para casa cuidar da sua esposa mal amada?
Para já, tenho que dizer que o lapso é propositado. E isso é fácil de demonstrar, já que precisamente há um anos atrás (ele há coisas do diabo), no dia 19 de Novembro de 2005, escrevi, sobre Aristófanes - na rúbrica das "Vozes da Poesia Europeia" - o seguinte:
ARISTÓFANES E OS PRAZERES DA PAZ
Considerado o mais brilhante autor de comédias da literatura grega, Aristófanes (sec IV A.C.) era um erudito conservador, apesar do uso de uma linguagem muitas vezes obscena e escatológica, que transformou o teatro grego num palco de intervenção política e social. Feroz adversário da Democracia de Sócrates e Eurípedes, acaba no entanto por ser vítima da censura imposta pelo despotismo aristocrático, consequente ao desfecho desfavorável para Atenas da Guerra do Peloponeso.
Talvez por isso, desenvolve um discurso pacifista absolutamente delicioso, que evita as banalidades filosóficas humanitárias, assumindo a preferência pelos prazeres epicuristas decorrentes do lazer: a guerra é uma chatice que impede o homem de preguiçar deveras, comer bem e fornicar bastante.
Assim sendo, porque raio não consta o homem do panfleto que tão esforçadamente esgrimi?
Para já porque é um parodiante e - nesse contexto - não vinha à conversa. Nenhum filósofo contemporâneo quer concerteza que a sua biografia - como a sua posteridade - possa ser assegurada por Herman José. Ou transformada em conversa da treta por José Pedro Gomes ou levada a prime time pelo Ricardo Araújo Pereira.
Estou, é claro, a ser injusto com Aristófanes e esse foi o meu erro. O comentário do ilustre blogger (e notável colaborador da minha amada Wikipédia) tem toda a pertinácia e eu sou, assim, obrigado a explicar-me melhor.
Vamos por partes:
1 - O cão de fila.
Apesar do seu pacifismo meio hippie, Aristófanes (450-355 A.C) era, por natureza, um agressor. Criava comédias para morder as canelas dos incautos, sátiras para massacrar os livres de espírito e poemas para azucrinar a consciência dos reformistas. Contundente crítico das artes sofistas da persuasão, feroz inimigo do teatro de Eurípedes e adepto da liderança de Péricles, Aristófanes ataca a dialéctica de Sócrates na famosa comédia "As Nuvens", ridicularizando o filósofo por ignorar os deuses, comparando-o com os sofistas e colocando-o, acertivamente, no grande saco dos demagogos. Esta peça é a única escrita por Aristófanes que fica em terceiro lugar nas Dionisias, uma espécie de olímpiadas da literatura grega (o homem estava habituado a ganhar sempre).
2 - Nuvens sobre a história.
"As Nuvens" é uma peça que data de 423 Antes do Jota. E é aqui que se coloca verdadeiramente o mais forte contra-argumento: Sócrates não pode ser uma invenção literária de Platão, já que este tem apenas 4 anos quando Aristófanes ridiculariza o personagem. A acreditarmos nestas datas, a minha pobre tese cai aos trambolhões pela escada do bom senso a baixo.
Porém, a datação das obras literárias clássicas é, no mínimo, polémica e a acreditarmos na versão oficial, Aristófanes tinha já escrito, pelo menos, 8 grandes êxitos de bilheteira com a singela idade de 27 anos, recorde que deixa a performance de Shakespeare a milhas. Mas, mais importante, a data da peça insere-se em pleno período da Guerra do Peloponeso (431-404). Ora deixem-me que vos pergunte: é lógico supor que um jovem crítico da guerra, numa nação em guerra, seja aclamado? A Grécia Clássica não vive uma realidade política análoga à da civilização ocidental contemporânea. Não podemos cometer o pecado de inocência de pensar que um puto cheio de talento, com muita veia e com alguma piada pudesse fazer e desfazer a seu belo prazer as instituições democráticas. Voltando à metáfora anterior: a cabeça de Ricardo Araújo Pereira, se bem que mais ajuízada, teria já desaparecido do seu lugar natural.
O problema da datação é aliás evidente dentro de si próprio. O tal vergonhoso terceiro lugar das Dionisias, acontece apenas em 420 A. C. Mais: sabe-se que Aristófanes introduziu alterações à peça posteriormente, embora não se perceba exactamente quando, nem qual o teor dessas mexidas. Para reforçar a incerteza, a própria data de nascimento do célebre parodiante é inúmeras vezes colocada em causa.
Assim, sendo, a datação desta peça, por si só e dadas as distâncias temporais e os nevoeiros da história, não me convence.
3 - Anarca de um dia para o outro.
Datas à parte, a coisa torna-se mais clara. O contra-argumento de que Aristófanes não é do clube de Platão e que não tem, por isso, interesse político em corroborar a sua personagem de estimação, não é lá muito sólido: Aristófanes é uma figura altamente contraditória. Fascistóide em democracia, torna-se rapidamente um inimigo da Tirania dos 30, muito simplesmente por lhe impossibilitarem a literatura feérica. Oscila entre um conservadorismo seminarista e a raiva libertária para acabar os seus dias como militante da Academia de Atenas, negando que alguma vez considerou Sócrates (ou Platão) inimigos políticos e surgindo até nos Diálogos como delicado e reverencial interlocutor do velho moscardo. De tal forma que, quando morre, tem em Platão um fã incondicional (como se percebe pela citação introdutória).
Aproveito o balanço e pergunto-vos, por minha defesa: Porque é que se sabe tão pouco da vida de Eurípedes, que é só o redactor número um da Tragédia Grega, e tanto de Aristófanes, um simples cómico? Não será a sua peça menos aclamada - As Nuvens - aquela que lhe garante afinal um lugarzinho porreiro no Louvre da posteridade? Vista a coisa deste prisma, sobra um excelente negócio para ambas as partes: Aristófanes conquista a infame e imortal reputação de ter sido um dia senhor com tomates para ridicularizar o único ser humano da história universal que não é ridicularizável. Platão ganha mais um adereço para o disfarce.
4 - Não foi por acaso que inventaram a máscara.
Mesmo que a cumplicidade que insinuo em cima, não se verificasse de todo, outra possível proponho: quando Fernando Pessoa se zanga com os estudantes de Coimbra (por causa de um absurdo ataque puritano dirigido à lírica mais ou menos gay de António Botto), o que é que faz o génio? Puxa do seu heterónimo sensacionista de sempre e chuta o Aviso por Causa da Moral, um dos mais sublimes bocados de prosa da língua portuguesa. O facto de Aristófanes esconjurar Sócrates em vez de Platão não quer dizer tanto assim sobre a existência de Sócrates, mas é bastante elucidativo quanto ao poder e ao estatuto de Platão. Fernando Pessoa mascara-se de Álvaro de Campos, Aristófanes esconde-se em Sócrates. É claro que todos sabem quem são de verdade, mas não é isso que importa pois não? Como já tive ocasião de demonstrar no texto anterior, os gregos do tempo apreciavam a charada.
5 - De volta à conspiração.
Esperava não ter que voltar a este assunto, que me é ligeiramente desagradável, mas o desprezo de Platão pelas mulheres - detectável pelo menos de 3 em 3 páginas da República (só um exemplo) - é uma tendência sociopata que, a certa altura, parece ser partilhada por Aristófanes. Já convertido ao pensamento reformista, o comediógrafo escreve a "Assembleia das Mulheres", sátira montada sobre a ideia de um Estado administrado por matronas, que resulta na violação da propriedade e numa tirania das velhas fêmeas sobre os moçoilos imberbes. Este, parece-me, mais uma vez, um texto encomendado. Como é bom de ver, Aristófanes e Platão tinham mais em comum do que pode entender a imaginação de Horácio.
6 - Don't get me wrong.
Dito isto, mantenho a dúvida. A data de uma comédia não justifica a tragédia, ou melhor, não há Carbono 14 que nos alivie da incerteza. Mas atenção, o que aqui ficou de Aristófanes a propósito do Problema de Sócrates não desdiz um milímetro do que escrevi o ano passado. O homem era absolutamente giro. Senão vejamos:
HINO AO FALO
"Ó compincha, do vinho bom amigo,
Ó conviva das noites de folia,
Sedutor de mulheres e rapazinhos!
Depois de cinco anos de serviço,
aqui estou a saudar-te. Que alegria!
Eis-me já de regresso ao domicílio.
às malvas atirei, mais às urtigas,
aquilo de que fiz meu compromisso,
A paz, bem vês, assinei-a sozinho.
E os que fazem a guerra, que se lixem!
Quanto a mim, ó compincha, o que prefiro
é encontrar no bosque uma mocinha
- ou antes: surpreendê-la no delito
de lenha rapinar aos meus domínios -
e prendê-la, despi-la, possuí-la! (...)"