quinta-feira, dezembro 07, 2006

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“O êxtase absoluto, o momento em que tocamos os deuses, encontramo-lo no corpo de uma mulher entregue em paixão, na esfusiante embriaguês do desejo, na total cedência ao festim único do orgasmo, sem pudores ou detenças entre o bem e o mal - percepção inócua que tantas vezes condiciona relações tristemente falhadas em nome de absurdos terrores incutidos pelo prior da paróquia, espelho de puritanices obscuras - falsa castração que apequena a grandiosidade desse sublime momento.”

Vê-se que este senhor autor sabe do que fala, é mestre no assunto, entre outras muitíssimas coisas de vasto latim um bocado complicadas para o meu modesto entendimento. Para dizer a verdade, só costumo ler os jornais da bola, o Correio da Manhã e uns policiais, quando calha.
Mas a coisa caiu-me no goto. Não afirmo que compreendi tudo o que li, que é coisa que de facto não me acontece com frequência, que sou de poucas letras, um bocadinho para o atrasado. Mas aquela coisa de tocar os deuses mais o orgasmo e a referência ao prior é à sua falsa castração - por acaso não vou à igreja desde que, sem o meu consentimento, me baptizaram; assunto que tem dado conversa de bota a baixo com o ordinário do meu padastro - deu-me para matutar e até tentei comentar o caso com a malta. Não adiantei nada com isso. O Benfica tinha perdido e era assim um fim de tarde lixado na tasca do Azambrino e a rapaziada não pareceu lá muito empenhada em discutir este género de tramóia, até porque o chanfrado do árbitro, filho da prostituta a quem quasi todos juravam já ter dado cabo do colchão e do resto, que era muito, dominava a conversa.
Claro que não era assunto para tratar de ânimo leve com a minha santa Gervásia, que só fez a segunda classe e teve desde logo que alombar no armazém de frutas do bairro para sacar mais uns tostões que a coisa estava preta e eu na altura a moer-me com uma danada de uma entorse que não dava sequer para me coçar. De resto, a diferença entre um orgasmo e um apito não tem importância nenhuma para a boa da Gervásia.

A rebentar de dúvida e curiosidade, acerquei-me num belo dia do Zeca, um gajo de truz que anda na Machado de Castro. O tipo dispunha de resmas de livralhada e de um dicionário que nunca mais acabava. E lá estava: “Grau máximo de excitação na cópula carnal, objecto de desejo venéro.” É claro que fiquei um pedaço embatucado. O Zeca é da opinião que os senhores fazedores de dicionários nunca tratam as coisas de maneira que a malta apanhe à primeira. Que nunca chamam os bois pelo nome. Por exemplo, quando se lhes pede que definam este animal, pespegam-nos com isto: “peça rústica, animal de canga, usado por ocasiões de festividades religiosas, corneta de dois chifres ou, se é aleijado, de um só deles. Que figura na qualidade de bumba-meu-boi no Paraíba do Sul do Brasil em festanças de carácter pagão.” E por aí adiante de modo que é difícil imaginá-lo pendurado no talho do Tó do Gancho. Não há sequer uma referência a um bom bife à café.
O que se queria dizer, segundo o Zeca, é que quando me enrolava com a minha santa Gervásia, estava simplesmente a copular. Preocupou-me aquela do venéreo, moléstia que mete antibióticos e outras mezinhas, e nunca me passou pela cabeça sujeitar a Gervásia a um horror de tal tamanho. Também não me lembro de alguma vez ter tocado os deuses, o que se calhar não é possível porque não estou a ver como é que agarrando as mamas da cara metade estaria em condições de jogar as mãos às coisas sagradas.

Aliás nisto de deuses, tinha a ideia de que há um só Deus. Mas depois a coisa mete o Jesus Cristo, parente próximo - por acaso carpinteiro que também é a minha arte - e ainda vem o Espírito Santo, a mãe de Jesus que era virgem e outros familiares de muito respeito e santidade. Depois há uma catrefa de santos e santinhas a dar com um pau. Não há um dia do calendário que não os tenha. Ele é o S. Martinho, o Santo Ambrósio, o S. Francisco, o S. Jorge, o S. João, o S. Paulo, o S. Pedro e até o Santo António tem uma estátua nas avenidas novas. É uma confusão levada da breca porque se calhar sempre me estive borrifando para as chatices da catequese e nunca fui capaz de vasculhar estas graves questões que vêem na Biblia que a minha tia Almerinda me ofereceu num dia de aniversário, andava eu ainda de calções.

Ora o Malaquias, um fulano reformado de falas grossas e muitas flatulências, que pára ali no jardim sempre acompanhado daqueles pacotes de cartão de litro de vinho tinto, que canta muito bem Francisco Alberto Sinatra, filósofo de boa cepa e reputação, sobretudo à medida que vai esgotando o pacote de litro; por entre os fartos bigodes que estão p'ra aí há 20 anos em completo abandono, garantiu-me um dia destes que a questão de Deus e dos deuses é assunto de muita fruta e delicada embalagem. Que os gregos e os romanos, bem como outros trogoloditas de antigamente, adoravam uma resma de divindades. Que era só escolher à fartazana. Que eram uns bacanos que moravam no Olimpo, uma espécie de condomínio de cinco estrelas, com piscinas, polibans, bidés revestidos a folha de ouro e um ror de outras mordomias sem impostos. Que, pessoalmente, de entre todos os deuses, tinha especial preferência por Diana, Mandrake, Vénus, o Super Homem e, em particular, por Baco. Que as criaturas são livres por simples questão de fé, o que me deixou um tanto apreensivo porque sou um homem sem fé nenhuma, nem quando arrisco na lotaria.
E ainda, segundo Malaquias, que nisto de Deus e de deuses há muita escolha, conforme se seja judeu, da Palestina, sírio, da Patagónia, capitalista americano ou simplesmente da Malveira da Serra. Que é assim basta ver os telejornais onde se nos mostram, a cores, que se mata e morre aos montões desde sempre, em nome de Deus, Alá e outros mostrengos e que, se se ler a Biblia ou o Kama Sutra com verdadeira devoção, à ideia de que só há um Deus não se deve dar importância de maior, visto que sendo o homem feito à sua imagem - como defende o prior, por seu livre arbítrio que, aliás, depende muito dos dias que lhe sobram, das pesadas preocupações com o deficit do Vaticano e mais com a cáfila de estafermos que alimentam e consomem a desavergonhada pedófilia de sacristia - não há que o recear. Está visto que não faz sentido a existência de um Deus alheio às monstruosidades que podia e devia evitar com um piedoso estalar dos dedos.
Diz ainda o Malaquias - enquanto não chega a piela do cair da noite - manipulando, cuidadoso e diligente, o segundo pacote de tinto, que basta lembrar a Santa Inquisição, o Holocausto, as guerras que incessantemente incendeiam o que resta deste pobre mundo, a escravidão que capou montanhas de gentes com a mesma catana com que cortada foi a cana que enriquecia os senhores dos seus destinos e vidas. E mais. Hiroshima, Nagasaki. Como aceitar a infinita misericórdia de tal Deus, que permitiu o horroroso bigode de Hitler, a barbicha de Bin Laden, o espantoso Ébola, os despautérios da Lili Caneças e agora até o obsceno aumento dos vinhos.
Para mais e por via das opções que tomamos livre e convictamente, ao céu e ao inferno - metáforas para assustar os crédulos e as criancinhas - é difícil aceder porque, junto dos seus portões, haverá certamente intermináveis engarrafamentos. Para entrar nesta história da eternidade é seguro que, no entretanto, se morre de velho.
O parecer do Malaquias nesta delicada matéria não é susceptível de recurso nem que venha de lá a lábia do Marcelo Rebelo de Sousa a 150 contos o parágrafo. E acrescenta que cristãos (novos e velhos), muçulmanos, maoistas, afroditas, chefes de secção das finanças, sportinguistas e transformistas são uma só molhada tomada pelo todo, espécies que os de Israel, por exemplo, hortodoxos ou não, ignoram absoluta e indiscriminadamente, quando são feitos explodir por entre crianças e idosos, coxos e marrecos.
E que mais isto mais aquilo até que finalmente o sol se arrecada sobre a folhagem do jardim - o pacote do tinto já esgotado - e Malaquias começa por entoar os primeiros acordes do My Way do amigo Sinatra. Esbugalharam-se-me os olhos de tantos saberes ditados por entre sorrisos sardónicos e algumas sonoras e convulsas gargalhadas. Um cultíssimo companheiro, este amigo Malaquias da Saudade.

A verdade é que naquela noite fui-me à Gervásia a rebentar do tal grau máximo de excitação por causa daquela coisa do copular e do desejo venério e das outras tretas todas. É certo que não dei por chegar aos deuses, nem por gozar o sublime festum de um orgasmo do caraças, mas penso que devo ter andado lá por muito perto. Acho que é só uma questão de ter fé e insistir. Acabou-se aquela sensaboria da obrigação, dia sim, dia não, excepto nos dias sagrados, como no Natal, na Páscoa e no Dia da Nossa Senhora da Conceição, que é da particular devoção da Gervásia. A coitadinha, derreada, não pode nessa manhã fazer-se ao armazém, para aviar a fruta do costume.
Hei-de falar ao Zeca naquela história do Kama Sutra, que pelos zum-zuns que ouvi na tasca do Azambrino fiquei com a impressão que a minha santinha vai ter de meter atestado médico por incapacidade, e por uma boa temporada.