terça-feira, janeiro 23, 2007
S E G U N D O C A P Í T U L O
UTÓPICOS E DISTÓPICOS:
DO SONHO DE UM MUNDO PERFEITO
AO PESADELO DA REALIDADE.
“Laws could be passed to keep the leader of a government from getting too much power”
THOMAS MORE
Ao iniciar este segundo capítulo devo advertir o simulacro de audiência que trato agora da mais estranha espécie de adivinho que existe na grande feira da história universal: o adivinho credível. O animal político que está a falar a sério ou o académico de cachimbo que sabe aquilo que diz. O cientista social fundador de cartas constitucionais e o filósofo engenheiro de novos paradigmas. Os seguintes personagens são muitíssimo respeitáveis, sem serem ícones religiosos ou campeões olímpicos de pallacorda, logaritmo de muito rara verificação na fauna dos imortais.
O conceito de utopia imanente neste capítulo tem muito que se lhe diga. E, provavelmente, correrei o risco de me arrastar na prosa. Assim sendo, para não dar muita seca ao gentil leitor e para não ficar muito tempo sem editar a rúbrica, o segundo capítulo será exibido aos poucochinhos.
Uma coisa é certa: não se deixem entusiasmar pelos primeiros optimistas. À medida que a cronologia avança, adensa-se o cepticismo. Parece que a malta só aguentou com os baldes de água fria da realidade até um certo ponto histórico. De tal forma vai caindo a fé na humanidade que os últimos protagonistas deste capítulo já não são utopistas. São distopistas. Estes, tratam não de construir a sociedade perfeita, mas de desconstruir o projecto de uma; parecendo estranhamente empenhados em demonstrar que ao homem não será sequer permitido sonhar.
Tenho ainda para dizer introdutoriamente que a palavra utopia deriva do grego clássico que mal se traduz por “não lugar”. Avanço assim uma definição fanaticamente filológica: utopia é uma ideia de um lugar que não existe. Parece-me bem. Adiante.
1 - ORIGENS DO CONCEITO UTÓPICO:
PLATÃO E THOMAS MORE.
Platão e a República Snob.
Sempre que Platão põe Sócrates a tagarelar sobre a forma ideal de governar o povão de Atenas, vem ao de cima do grego uma certa sobranceria intelectual, que se compreende: gajo assim para o inteligente, Platão não confiava na populaça um ontológico centímetro que fosse da sua querida República. E explicava o politicamente incorrecto recorrendo ao seu esquema de filósofo oracular. A sociedade ideal deveria ser governada pelos filósofos, ou pelo filósofo-rei, porque somente o homem sábio tem a inteira ideia do bem, do belo e da justiça. Mais a mais, o sábio já o era antes desta vida e assim o será depois de ser condenado ao tijolo e à minhoca, pelo que não há nada que enganar. Ao contrário do que muito boa gente anda por aí a pensar, para Platão o regime ideal não era a democracia, mero estágio necessário à evolução histórica. Percursor de todos os iluministas que em má hora o século XVIII pariu por desgraça, Platão acreditava na figura do sábio tirano, no contexto de uma “ditadura moral do conhecimento”, so to speak. Fazendo uso da sua proverbial oratória de agent provocateur, Sócrates, na República, chega ao ponto de assumir o inconfessável: entre uma democracia má e uma tirania bera, é preferível uma tirania bera, muito simplesmente porque neste último caso só erra um homem e só a ele se pedem responsabilidades. Corta-se-lhe o pescoço e está o caso arrumado. Na democracia má, a cantiga já não cabe na escala. Há muitos incompetentes para levar ao carrasco (todos os cidadãos, basicamente), que não vai aguentar psicologicamente a ceifa de mais que dois ou três pescoços por jorna. Sejamos sensatos.
Minudências à parte: para Platão a política é uma estética e a administração pública é uma ética. Como o género humano que melhor sabe enquadrar o belo e o bom é o do filósofo, a república ideal seria liderada por esta ilustre classe operária de intelectuais de pijama. Penso, logo governo.
É claro que, para nós outros, que vemos o mundo do lado 2006 D.C., esta coisa não tem pés nem cabeça, mas na altura era um conceito pop à brava. E olhem que durou que se fartou, como ilustram as rábulas seguintes.
Thomas More e a reforma agrária.
Escrever sobre o pai natal do mundo socialmente perfeito é tarefa que provavelmente deveria ter o juízo de evitar, dada a grandiosidade do assunto, mas enfim:
Thomas More (1438-1535) viveu uma vida épica. Homem de carácter e imaculada reputação, jurista dos sete costados, operático soldado da dignidade humana e iconográfico inimigo do despotismo esclarecido, foi um cavaleiro com causas, com génio e com um grupelho de excelentes amigos, como, por notável exemplo, Erasmo de Roterdão.
Lamentavelmente apanhado no mesquinho conflito entre Henrique VIII e a igreja romana, conseguiu chegar a Lord Chanceler sem se converter ao anglicanismo (religião que Henrique inventou para se poder divorciar quantas vezes lhe desse na gana). Independentemente de muito receber o Rei na sua casa mítica dos arrabaldes de Londres, para grandes repastos bucólicos e supremas conferências sobre o último destino da humanidade e a soberania civilizacional do povo inglês, afora More considerar o seu monarca como um verdadeiro messias da administrção pública, a coisa tinha que acabar em dramalhão grande e foi assim mesmo em grande dramalhão que acabou. Em Março de 1534, é editado o Act of Succession pelo qual todos os súbditos de Sua Majestade deveriam jurar reconhecer a descendência de Henrique e Ana como herdeiros legítimos do trono, sem que nenhum estrangeiro (leia-se, alienígena do vaticano) pudesse alvitrar fosse o que fosse. A 14 de Abril, More é convocado a Lambeth para jurar sobre o edital e, ao recusar tal promessa, levado à custódia do abade de Westminster. Quatro dias depois é preso na Torre e em Novembro culpado de traição. Na Primavera de 1535, Lord Cromwell (vilão de série b e ancestral inimigo de corte) oferece-lhe, surpreendentemente, a chance de sobrevivência: caso se manifeste favorável aos novos estatutos que conferem a Henrique o título de Supremo Chefe da Igreja, More safa-se da forca. Mas o obstinado e valente personagem afirma-se apenas fiel súbdito do rei, rejeitando qualquer devoção ao bispado inventado. A 1 de Julho é julgado por traição em Westminster Hall por uma comissão especial de 20 membros. É condenado à forca de Tyburn, embora Henrique, depois de um ataque de misericórdia, decrete uma bem mais agradável decapitação na Torre, executada na manhã de 6 de Julho para grande vergonha da justiça inglesa que ainda hoje chora a canalhice infame.
Mapa de Utopia por Ambrósio Holbein - 1516
Fã incondicional de Platão, Thomas More inspira-se na República para inventar a obra que é a mãe de todas as batalhas do futurismo: a Utopia. O protagonista, Rafael Hitlodeo, resulta de um cruzamento genético entre Ulisses e Sócrates e fala-nos de uma ilha que encontrou no decurso das suas viagens, onde as gentes vivem felizes numa sociedade perfeitinha da silva, embora a escravatura seja aceite com naturalidade (graças ao velho truque da retórica grega: os escravos não são cidadãos), estranho conceito que Jefferson veio a recuperar para justificar o seu idealismo-com-escravos-em-casa.
A Ilha da Utopia é uma espécie de negativo da Ilha dos ingleses e para perceber a obra é preciso perceber a Inglaterra do tempo. Ora a Inglaterra do tempo estava entretida a inventar o capitalismo e Thomas More é capaz de ser o primeiro marxista antes de Marx, o primeiro comunista antes de Proudhon, na história da ideias.
A concepção da ilha de Utopia centra-se na limitação dos interesses individuais, na consequente sublimação das necessidades colectivas e na abolição da propriedade privada.
Esta sociedade não se dá às bactérias da burguesia e, por isso, tudo é justo. Através das sábias palavras de Rafael Hitlodeo, More inventa o conceito de Reforma Agrária para que a terra (o grande valor capitalista de então) não pertença nem a nobres, nem a padres, nem a mercadores, nem a burocratas - todos parasitas da felicidade comum - e o trabalho, assim como a riqueza, seja distribuído igualmente por toda a gente. E isto não só para prevenir a prosperidade dos ricos, mas na mesma medida para que não subsistam os preguiçosos!
As monarquias e oligarquias tendem a ser debilitadas pela natureza egoísta dos homens, acabando por se transformar em burocracias sem virtude, que servem apenas os interesses de alguns indivíduos para prejuízo de todos os outros. Por isso é que, na ilha, se contrapõe a república democrática assente na antítese dos ensinamentos de Maquievel: o bom governo tem origem no povo e o poder administrativo e executivo é atribuído democraticamente aos mais velhos, já que estes são, por consequência da provecta experiência de invernos, mais sábios (outro tique platónico).
Em Utopia, as decisões políticas têm por base as células familiares. Cada família é dirigida pelo homem mais velho e um certo número de famílias elege um magistrado regional que as governará. Cada dez destes magistrados obedece a um género de ministro, também eleito, e estes ainda elegem um príncipe. Os magistrados, os ministros e o príncipe reúnem-se no Senado, onde determinam a política da nação, sendo porém invariavelmente sujeitos ao rígido escrutínio da opinião pública. Kadhafi tentou implementar, na Líbia, um modelo desvairado assim parecido com este durante os seus primeiros anos de poder, mas a experiência não correu lá muito bem e a república passou rapidamente a monarquia.
No meio disto tudo (e causa de tudo isto?) as mulheres, claro está, não têm direitos políticos, mas trabalham como os outros e é-lhes dada a faculdade suprema de ter opinião na polémica escolha dos seus maridos, o que não é de fraca consolação.
Thomas More foi, de certa forma, um percursor do behavorismo: em Utopia toda a gente é condicionada e educada dentro dos mesmos parâmetros cluturais e simbólicos, valendo para eficácia da escolástica a censura, a repetição, o bombardeamento subliminar e demais reputadas técnicas de berbequim, cuja origem injustamente atribuímos a alguns malucos mais tardios como Goebbels, Estaline ou Mao Tsé-tung. Mas porque o axioma igualitário é insustentável perante a ignorância de muitos e a erudição de uns poucos, em Utopia, a educação é gratuita, obrigatória e servida da mesma maneira a toda a gente: bem temperada pelo sal ideológico.
O alfabeto Utopiano - com elementos latinos e gregos - segundo Peter Giles.
No que diz respeito à defesa, em Utopia a guerra é encarada sempre como último recurso, embora todo o cidadão receba treino militar. Thomas More tem aqui um acesso simultâneo de inocência e pragmatismo: como o trabalho colectivo resultaria numa produção muito acima da necessária para a manutenção da sociedade (erro crasso, que viria a ser demonstrado quatro séculos depois), parte dessa riqueza seria reservada para contratar exércitos mercenários que protegessem a ilha fora das suas fronteiras, bem como para subornar os exércitos adversários. Mais a mais, este recurso não pode ser utilizado contra o utopiano comum, já que este não encontra no dinheiro qualquer valor.
A ilha de Utopia é, além de tudo, epicurista. Como na dialéctica entre a liberdade e a igualdade, More opta pelas virtudes da igualdade, a compensação individual surge através de um conceito de prazer e felicidade que é inerente à vivência social e que lhe dá o seu último sentido. Todo o cidadão de Utopia tem carta branca para procurar o prazer, desde que as suas delícias não resultem no prejuízo de alguém. Muito convenientemente, a ética e a religião também são ligadas ao prazer e à felicidade, embora o deus dos utopianos permanecesse - na sua essência - judaico-cristão. Esta inédita combinação entre as convicções pagãs e os evangelhos segundo Constantino implica a execução de alguns exercícios radicais de ginástica moral que More não enuncia, mas que por certo a sua imaginação prodigiosa conseguiria resolver. Afinal, a criatividade sempre foi a melhor amiga do adivinho profissional.
(cont.)