sábado, dezembro 27, 2008
Uma ponte sobre a discórdia.
Este é um dos mais belos romances que li na vida e li-o este ano. A personagem central é uma ponte. Uma ponte fronteira e uma ponte união, uma ponte que separa impérios e que congrega religiões. Uma ponte sobre o rio e sobre o tempo e sobre o ódios dos homens. Um ponte que encerra fantasmas e grita por vinganças. Uma ponte que chora e que se desmorona. Uma ponte que é um alvo e uma conquista, que traz o aviso de perigos e a promessa de reforços. Agora otomana e depois austro-húngara, um dia bósnia e sérvia na manhã seguinte, fiel pelos séculos e herege de repente, sacrossanta e comunista, é uma ponte que faz trânsito para a redenção ou que conduz ao inferno, que salva e condena mas, sobretudo, é uma ponte que existe. Que é concreta. Que não é uma metáfora.
Quando terminei a leitura desta obra-prima do Nóbel Ivo Andric, pensava que o raio da ponte era uma metáfora e fiquei-me com essa. Dei provas, por isso, de ignorância e preguiça mental. O meu amigo Nuno Silva, que teve a inspiração de me oferecer o livro, foi pelo contrário mais inteligente e mais curioso e descobriu que a ponte existia mesmo, como sempre tinha desconfiado.
Mandada levantar no Século XVI pelo vizir Mehmed Pasha Sokolović, foi desenhada por Mimar Koca Sinan, um dos mais célebres arquitectos do Império Otomano e é um clássico da sua época, atravessando com rara elegância as águas temperamentais do Rio Drina. Os seus 11 harmoniosos arcos servem ainda hoje a cidade de Višegrad, no Leste da Bósnia e Herzegovina.
A Ponte Mehmed Pasha Sokolović sobreviveu a quatrocentos invernos e resistiu à queda de dois impérios só para ter que suportar o insuportável século XX: sofreu na sua pele de pedra os ferimentos das duas grandes guerras e foi palco para chacinas no conflito dos Balcãs. A Ponte está ali, ainda. Testemunha de crimes e cúmplice de revoluções. Está viva, mostra as suas cicatrizes mas eleva-se inteira, artéria maior no coração de um continente exausto.