Portugal é a nação mais antiga da Europa e, exceptuando dois ou três momentos breves na sua história interminável de vergonhas e lágrimas, de ignorância e miséria, Portugal é um projecto falhado.
Dou um exemplo: se Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz se levantassem da campa para dar às farpas um arranjo contemporâneo, não teriam para cima de uns poucos minutos de trabalho. Não seria preciso mudar mais que coroa por presidência. Os problemas e os atavismos e os imobilismos e a falta de imaginação e a ausência de coragem e a vulgaridade e a imbecilidade que reinavam há cento e vinte anos atrás, presidem agora, iguaizinhas.
A crítica feroz e gargalhante da Campanha Alegre adapta-se toda e inteira à vida política e literária e mediática e social do Século XXI português porque este é um país que não muda. Quando muito, repete-se.
O problema dos Descobrimentos, que também vem a propósito, foi substancialmente um problema de escala. O país de duzentas mil almas não tinha massa crítica e fôlego demográfico para uma coisa daquelas. Hoje, a primeira dificuldade da nação permanece essa mesma: continuamos a ser poucos e pequenos, continuamos a ser velhos, continuamos a ser pobres, marginais, insignificantes. O paradoxo aqui é que nenhum português nasce resignado à sua insignificância. Nenhum Português nasce para a marginalidade da sua geografia. Nenhum português nasce para ser um em nove milhões de reformados. Se Portugal fosse habitado por 60 milhões de navegadores, Portugal seria hoje a primeira nação do mundo.
Quando a esquizofrénica e decadente corte de D. João VI e Carlota Joaquina se lançou no Atlântico em pânico histérico por medos do mais doente, faminto e esfarrapado dos exércitos de Napoleão, contribuindo de forma imediata para o anúncio do fim do império e conspurcando as páginas da história com um dos mais cobardes e manhosos exemplos de liderança que podem ser ensinados às criancinhas de todo o mundo (a História de Portugal tem destas elevações), estava apenas a revelar um cancro de genoma muito lusitano: a patológica e crónica falta de qualidade dos seus líderes condena Portugal à infâmia e ao anedotário, desde que D. Afonso Henriques inventou o conceito de homem honrado que não cumpre tratados. Hoje em dia, não podemos estar mais atolados no lodo das lideranças desqualificadas. Em todas as áreas do poder político, associativo e económico é absolutamente deprimente a falta de qualidade moral e intelectual dos protagonistas. Ter um primeiro-ministro Sócrates é constrangedor como ter um rei Sebastião. Ter um chefe de estado saído da gasolineira de Boliqueime é aborrecido como ser súbdito de um descendente da Casa de Bragança. Não importa a sua origem humilde ou gloriosa, os líderes que temos tido são, por regra, um género de novos ricos da razão pura e uma espécie de mendigos da razão prática.
Ora, se Portugal é a nação mais antiga da Europa e, exceptuando dois ou três momentos breves na sua história interminável de infâmias e ridicularias, de erros e equívocos, Portugal é um projecto falhado; porque raio é que Portugal é a nação mais antiga da Europa, notável pelos seus poucos e breves momentos de excepção? Porque raio é que, contra tudo e contra todos - contra os traidores que o querem vender, contra os diplomatas que o querem casar, contra os políticos que o querem falir, contra os burocratas que o querem normalizar - permanece Portugal no mapa, cabeça armada sobre o abismo do Atlântico?
Falo por mim: eu não quero ser espanhol. Gosto até dos espanhóis, mas desculpem lá, gosto mais aqui do meu inferninho. Tem novecentos anos de chamas e eu gosto deste calor. É aqui que quero permanecer condenado.
Eu não quero ser angolano. Não tenho nada a ver com aquela gente; lamento muito, mas não gosto deles nem das metralhadoras deles e faz lá um clima muito desagradável. Não estou a ver Portugal a funcionar como colónia de um país onde as baratas entram dentro de casa a voar, pela janela.
Eu também não quero ser belga e nem é preciso explicar porquê. Ninguém quer ser belga. Nem os belgas.
Bom, e uma coisa é muito certa dentro da minha cabeça: eu não quero ser brasileiro, de chinelinhos na favela e pila pública no carnaval. Poupem-me.
Eu não quero ser chinês, por motivos óbvios: até o inferno lusitano dá mais qualidade de vida ao seu cidadão-alma-penada. Além disso, não consigo mesmo trabalhar a comida com aqueles pauzinhos fugidios.
Em resumo e por exclusão de partes: eu quero continuar a ser Português, apesar do que isso significa e pesa e dói. Não quero ser tomado por conta. Deixem estar sossegada a nação disfuncional que já o era há muitos séculos, quando nasceram as grandes nações de hoje. Nós portugueses só fazemos mal a nós próprios. E isso é mais do que muitos podem dizer.