quinta-feira, julho 29, 2010

Introdução aos Analectos.



"Podemos escutar e recolher os ensinamentos do Mestre no que se refere ao saber e à cultura, mas não há maneira de o fazer falar da natureza última das coisas nem da vontade celeste."
Queixa de um discípulo de Confúcio

É possível levarmos um homem à Lua sem nos perguntarmos pela existência de Deus.

É possível fazer ciência que reconheça os limites filosóficos da condição humana.
É possível ser moral sem saber de metafísica e é possível ser ético na ignorância da fé.
É possível fazer política sem fazer religião e é possível criar uma obra-prima que não coloque a questão do Mistério. Que não queira saber do Mistério para nada.
É possível estabelecer com rigor matemático até que ponto podemos ir, na senda da verdade.
É possível fazer silêncio sobre aquilo que não sabemos dizer.

Arde, meu país, arde.

Reduzem-se a cinza os céus por uma noite quente de Verão.
Incendeia-se de desgosto Portugal em Agosto, paróquia em procissão.
Antes que morras, meu país que foste um dia, arde em letargia.
Antes que te esqueçam em vida, arde até à morte, meu país-romaria.

Portugal para sempre demasiado tarde;
arde, meu país, arde.
Canto do mundo valente e cobarde;
arde, meu país, arde.
Arde, meu país, arde.

Que diria Camões deste céu vermelho, deste horizonte enferrujado
pelo inferno e o inverno da nação que deu errado?
Nem os portugueses, a mais das vezes, gostam de Portugal:
deitam-lhe fogo, deitam-lhe a mão, fazem-lhe mal.

Que o diabo te leve e que deus te guarde;
arde, meu país, arde.
Não há chama que te abastarde;
arde, meu país, arde.
Arde, meu país, arde.

Pátria sem os heróis que canta, em timbre debilitado:
o notável é imbecil ou capitão de abril, reformado.
Ficaram todos por lá, os melhores que há, na perdida de Quibir.
E os que viveram, atrasados mentais que não souberam ir.

O fim da história nunca vem tarde;
arde, meu país, arde.
Canto do mundo valente e cobarde;
arde, meu país, arde.
Arde, meu país, arde.

sexta-feira, julho 09, 2010

Do Belo e da Consolação ou o erro de Álvaro de Campos



De Platão a Bertrand Russel, grassa estruturalmente um erro terrível na filosofia: a aspiração do homem não deve ser o da conquista da felicidade, mas a da gestão do sofrimento. A história da humanidade, e a experiência individual de cada um de nós, demonstram inequivocamente que a vida não promete felicidades (o próprio conceito de felicidade é equívoco e espúrio), tanto como garante misérias.

Não viemos ao mundo para o prazer, o amor ou a paz. Viemos ao mundo, parece-me isto claro, para dar continuidade a um indiferente e amoral motor cósmico que transcende sensorial e analiticamente qualquer esforço de compreensão. Não nos é dado saber mais do que aquilo que é necessário para progredirmos pelo tempo em direcção a um destino que largamente nos escapa. Estamos em modo "need to know" e esse é o desgosto iniciático, porque se dá o caso de sermos animais curiosos.
À contemporânea incapacidade da ciência para produzir dogma, acresce a falência técnica da religião. Entre os bons milhões de deuses que habitam a história da metafísica, não há um que consiga resolver a embrulhada da Quântica ou elaborar sobre a Terceira Lei da Termodinâmica, mas isso seria de supor: os deuses serão omniscientes, mas de cultura generalista, e sobretudo não devem ser eruditos, sob o risco de perderem a sua credibilidade junto das massas. O problema porém, reside na consolação. A democratização do acesso à informação e às tecnologias que a produzem, principalmente a partir da máquina de Gutenberg, entregam ao homem comum a realidade de um mundo sem deus. O processamento quotidiano desta informação implica um constante teste à fé humana. É um cliché perguntar-mo-nos sobre a existência dos deuses perante o horror de Auschwitz, sendo certo que temos hoje um Auschwitz por semana, garantido pelas redacções e transmitido à hora da refeição. Perdidos no ecossistema caótico que Deus nos ofereceu como morada, encarcerados dentro desta natureza que Ele nos deu por condição, que consolo podemos recolher na Sua companhia? Não é fácil, nem aconselhável, promover o apocalipse dos olimpos, mas a verdade é que não há fé que vença os repetidos, eloquentes e operáticos horrores do mundo; nem mitologia que quebre as grilhetas da condição humana.
A única consolação do individuo civilizado é, portanto, a Arte. A contemplação do belo, para a maior parte; a invenção do belo, para uma ínfima minoria. Na arte encontramos consolo porque convivemos com o absoluto e perante o absoluto; não precisamos de fazer perguntas. Os Concertos de Brandeburgo respondem a todos os mistérios e ninguém precisa de saber da temperatura do bosão quando assiste ao calvário de Cristo, através das visões de Caravaggio. De qualquer forma, a Vénus de Milo é concerteza mais bela que o Binómio de Newton, independentemente do vento que faz lá fora. A Arte salva-nos do lodo do mundo e o que é mais: eleva-nos acima do inferno da existência.