"Logo existe, sem dúvida, no entendimento e na realidade, algo maior do que o qual nada se pode pensar."
Santo Anselmo (1033/34-1109). Conclusão do Argumento Ontológico. Proslogion, c. II
Jantava ontem na companhia de, entre outros ilustres, alguns comensais de formação em ciências, quando um destes cavalheiros se sai com o seu definitivo argumento ontológico em favor da inexistência de Deus: se Ele existisse como entidade omnipotente, facilmente cairia na armadilha de produzir algo superior às suas forças, digamos, um calhau de tal forma imenso que Ele próprio não o poderia suportar. Perdido assim o super-poder da omnipotência (deixou Deus de ser potente sobre o calhau), está também perdido por simples cálculo de lógica o estatuto divino, sobrando o trono cósmico para algo superior a Ele, digamos, o calhau imenso.
Estava eu muito divertido a apreciar o espírito deste companheiro, quando me lembro de Anselmo de Cantuária, o grande pioneiro e fundador dos argumentos ontológicos. Empenhado em demonstrar racionalmente a existência de Deus, o bom e velho santo postulou assim: Deus existe porque não conseguimos imaginar nada superior a Deus. Se conseguíssemos pensar em algo superior a Deus, essa nova realidade intelectual seria por definição a entidade divina e assim sucessivamente. Ora, se isto se passa no entendimento é possível, apenas possível, que se passe também na realidade. Escusado será dizer então que Deus existe para manter o campo de possibilidades dentro de uma constante estável, de tal forma que a realidade não entre em parafuso.
Convenhamos que isto está carregadinho de bruxaria quântica por todo o lado e não é por acaso que o célebre arcebispo de Cantuária era um pensador da escola de Santo Agostinho e que este era um platónico dos quatro costados e que Heisenberg afirmou um dia que as conclusões da física contemporânea se aproximam mais dos postulados de Platão de que dos cálculos de Aristóteles (o que é bastante assustador).
Nem é por mera coincidência que Kurt Gödel - provavelmente o mais genial matemático do Século XX - tenha dedicado uma boa parte da sua vida a tentar demonstrar a impossibilidade de uma explicação plausível da realidade que não leve Deus em conta.
Os argumentos ontológicos constituem quase sempre excelentes refeições para físicos e matemáticos e é por isso que o ateu de espírito, professor emérito, estimado comensal que na mesa onde me sentava divertia a sua plateia burguesa, usa precisamente a mesma aritmética radical de Santo Anselmo, para estar em desacordo com ele.
Nem é por mera coincidência que Kurt Gödel - provavelmente o mais genial matemático do Século XX - tenha dedicado uma boa parte da sua vida a tentar demonstrar a impossibilidade de uma explicação plausível da realidade que não leve Deus em conta.
Os argumentos ontológicos constituem quase sempre excelentes refeições para físicos e matemáticos e é por isso que o ateu de espírito, professor emérito, estimado comensal que na mesa onde me sentava divertia a sua plateia burguesa, usa precisamente a mesma aritmética radical de Santo Anselmo, para estar em desacordo com ele.
Porém, parece-me claramente escandaloso que nenhum dos ilustres acima referidos se aperceba do elefante cor de rosa que está sentado com jeitos de buda no brilhante salão desta conversa: Deus existe, claro que sim e muito simplesmente porque não é possível ao homem suportar o peso da Sua inexistência.
Deus existe no intelecto humano - é um facto - e deriva exclusivamente da ignorância manifesta pelo homem perante os mistérios naturais e perante o abismo filosófico que está montado na sua consciência.
Mas para que Deus seja real, não pode ser apenas um conceito mental, ou um reflexo intuitivo. Terá que ser imanente na realidade e transcendente sobre as teologias. Deus, a existir, é imune a tratados escolásticos, teoremas da incompletude, metáforas de restaurante e dialécticas de sacristia. E, assim sendo, parece-me muito provável que se esteja completamente nas tintas para o dramalhão que é a história da humanidade e para os dilemas metafísicos da alma. Quero eu dizer, a existir Deus, a sua imanência não nos servirá rigorosamente para nada. Não há qualquer evidência na história ou na natureza que demonstre que somos os filhos eleitos seja de quem for e, a sermos filhos de alguém, é apenas sensato dizer que o criador não parece estar muito preocupado com o destino dos criados.
Em conclusão, podemos afirmar com alguma segurança que Deus existe como objecto intelectual de consolação. Afirmar mais do que isto torna-se um jogo muito perigoso, para crentes tanto como para ateus. Um jogo que estamos condenados a perder, mesmo com um poker de sábios - ou de santos - na mão.
Nesta cena épica, escrita por Cormac Mccarthy e interpretada por Tommy Lee Jones e Samuel Jackson, o ateu procura arrasar a fé do crente com uma explosão de argumentos ontológicos. A sua Crítica da Razão Prática é eloquente. Mas a Razão Pura não lhe deixa alternativas para além do suicídio. O crente, por outro lado, abraça as dores da vida com sentido de missão e continuará lá amanhã, na estação ferroviária da esperança, pronto para salvar uma outra alma perdida das garras locomotoras do Sunset Limited. Mas sofrerá na mesma a indignidade da existência. E será igualmente vítima da solidão extrema a que o condenou Jesus Cristo.
The Sunset Limited - Dir.: Tommy Lee Jones
Nesta cena épica, escrita por Cormac Mccarthy e interpretada por Tommy Lee Jones e Samuel Jackson, o ateu procura arrasar a fé do crente com uma explosão de argumentos ontológicos. A sua Crítica da Razão Prática é eloquente. Mas a Razão Pura não lhe deixa alternativas para além do suicídio. O crente, por outro lado, abraça as dores da vida com sentido de missão e continuará lá amanhã, na estação ferroviária da esperança, pronto para salvar uma outra alma perdida das garras locomotoras do Sunset Limited. Mas sofrerá na mesma a indignidade da existência. E será igualmente vítima da solidão extrema a que o condenou Jesus Cristo.
The Sunset Limited - Dir.: Tommy Lee Jones