Os deuses do caos governam cegos
A tragédia do sapiens menino.
São espoliados todos os egos
Da propriedade do destino.
No meu caso particular, confesso:
Confio mais na gestão divina
Que no equívoco excesso
Com que esfrego a lamparina.
Sou como uma andorinha
Que voa tonta contra a janela.
Se a vida fosse minha,
Não sabia o que fazer com ela.
Não sou eu quem desalinha
O velado novelo desta novela.
Se a vida fosse minha,
Não sabia o que fazer com ela.
É na verdade mil vezes abençoado
Quem esvoaça sem controlo.
Desde que o rumo se sustente alado
E que o piloto seja Apolo.
Quanto a mim, digo o seguinte:
Sei que o desastre é inerente
E sei que a virtude do pedinte
É pedir para toda a gente.
Há uma mágica varinha
Que exerce aleatória a tutela.
Se a vida fosse minha,
Não sabia o que fazer com ela.
Manda a fada madrinha
No enredo que guarda e vela.
Se a vida fosse minha,
Não sabia o que fazer com ela.
Ah, a santa irresponsabilidade,
A liberdade suprema, o nirvana
De apostar tudo na probabilidade
Da dúvida cartesiana!
Em boa verdade devo ser grato:
Como o verão passa a inverno
Assim também me dão trato
os que governam este desgoverno.
No Olimpo seguem a linha
de um folhetim da Venezuela.
Se a vida fosse minha,
Não sabia o que fazer com ela.
Reina misteriosa rainha
sobre o guião da telenovela.
Se a vida fosse minha,
Não sabia o que fazer com ela.
Sim, dou graças aos céus
Por não ser proprietário do eu.
Não tenho nenhum uso
Para o fogo de Prometeu.
Sim, agradeço à metafísica
Por não ser dono de mim.
Por já ter sido escrita a música
Deste fado folhetim.
Sou como aquela andorinha
Que se estampa contra a janela.
Se a vida fosse minha,
Não sabia o que fazer com ela.
Não sei quem desalinha
O velado veludo da novela.
Se a vida fosse minha,
Não sabia o que fazer com ela.
Se a vida fosse minha e fosse bela,
Não sabia o que fazer com ela.
Não sabia o que fazer com ela.