sábado, abril 06, 2013

Jornal de Letras | Janeiro/Março 2013

Com os Holandeses - J. Rentes de Carvalho - Quetzal
Mal soube que este senhor tinha escrito um livrinho que denuncia os holandeses pelo que eles são - uma corja de cínicos, sacanas, agiotas e interesseiros que se esconde debaixo de um sobretudo politicamente correcto, fui logo a correr lê-lo. E li-o nun instantinho porque é delicioso e, o que é mais, verdadeiro.
J. Rentes de Carvalho fala por experiência. É um infeliz que vive com os holandeses há dezenas de anos e isso é, afinal, a única coisa neste ensaio brilhante que fica por explicar: se enjoas tanto, J., porque é que insistes, amigo?

Istambul. Memórias de Uma Cidade - Orhan Pamuk - Editorial Presença
Este livro é uma chatice tão grande, mas tão grande, que até eu, um leitor obstinado que só muito raramente desiste de uma leitura, desisti dele. Por qualquer razão cujo entendimento me transcende, o senhor Pamuk acha que é interessante para os outros, principalmente para os outros que não são turcos ou membros da Academia Sueca, a enumeração pueril das suas memórias de infância e adolescência, passadas numa cidade decadente e melancólica, ávida e ciumenta do Ocidente, chorosa do império que em boa hora perdeu. Está enganado, claro. Uma lamechice a evitar a todo o custo.

O Museu da Inocência - Orhan Pamuk - Editorial Presença
Depois do que disse anteriormente, o gentil visitante deste blog estará a perguntar-se o que eu pergunto a J. Rentes de Carvalho: se Pamuk é secante, porquê insistir no Pamuk? Porque sou teimoso e gosto de ter fundamentos para amaldiçoar a Academia Sueca que em 2006 teve o desplante de atribuir o seu Prémio manhoso ao sujeito.
Este romance interminável, não por causa das 650 páginas, mas por causa da ausência de qualquer tipo de progresso narrativo, parte de uma premissa que até é prometedora: o protagonista, à medida que nos conta a história de um amor infeliz, mas obsessivo, conduz-nos pelo museu que reúne não-sei-quantos-mil objectos, no sentido de materializar a memória dessa paixão. Até aqui tudo bem. O problema é que a rábula se arrasta por quinze anos da mesma coisa servil e abjecta, doente e repititiva, numa espécie de Servidão Humana em formato Tempo Perdido, que poderia resultar se Pamuk fosse um Somerset Maughan ou um Marcel Proust. Não é, evidentemente, o caso. Cheguei ao fim com vontade de não ter começado.

O Último Homem na Torre - Aravind Adiga - Editorial Presença
Primeiro: sou um fã incondicional do Aravind. Porque tem talento para dar e vender, porque evita a armadilha do humanismo e porque não está interessado em vender bilhetes postais da Índia. Nas páginas de Aravind Adiga vive a natureza humana e não o que gostaríamos que fosse a natureza humana. Nas histórias de Aravind Adiga, vibra a Índia pobre, infecta, maliciosa, escravizante; a Índia das castas, do caos urbano, da corrupção. E se o Tigre Branco já me tinha enchido todas as medidas do gosto e da sensibilidade, este Último Homem na Torre é uma coisa absolutamente devastadora. Um grande escritor. Um grande romance.

Siddhartha - Herman Hesse - Casa das Letras
A ignorância humana é um abismo inescapável e devo confessar, envergonhado, que vivi quase 46 anos sem ler este livro. E quanto mais profundamente me embrenhei nele, mais revoltado fiquei comigo. Siddharta é um poema penta-essencial e até custa a crer que um alemão consiga contar esta história, que é absolutamente hindu. A não  ser que consideremos que a história que é contada, para além de ser absolutamente hindu, é verdadeiramente universal. 
A fábula do filho do Brâmane que não acredita em doutrinas nem em nirvanas nem em palavras, que não segue ninguém, que não respeita o destino e que encontra apenas uma tardia e ingrata redenção no amor paternal, incondicional e purificador, é de uma beleza, afinal, divina. É a literatura no seu estado alquímico. 

Poesias - Fernando Pessoa - Edições Ática
Sendo provavelmente a terceira ou quarta vez que leio este manual prático para a conquista da eternidade, foi a primeira vez que o li de uma assentada, de fio a pavio. Há muita gente que acha que certo tipo de literatura não é para ser lida de fio a pavio. Eu discordo. Então quando se trata do Fernandinho, acho muito simplesmente que tudo o que ele escreveu - tudo mesmo, sem excepção alguma - deve ser lido de fio a pavio. Várias vezes seguidas.
Até porque há sempre um poema maravilhoso que nos escapou antes. Há sempre um momento genial que não tínhamos percebido completamente. Há sempre um novo Fernando Pessoa à espreita, a rir-se da nossa triste condição de mortais. Por exemplo:

A morte chega cedo,  
Pois breve é toda vida. 
O instante é o arremedo  
De uma coisa perdida.   

O amor foi começado,  
O ideal não acabou,  
E quem tenha alcançado  
Não sabe o que alcançou.   

E tudo isto a morte  
Risca por não estar certo  
No caderno da sorte  
Que Deus deixou aberto.