segunda-feira, setembro 23, 2013

Escritos na areia #1


HINO AO ROSÉ

Tenho as plantas dos pés escaldadas. Arrisquei-me descalço pela areia impossivelmente abrasiva desta praia que grita luz e escaldei-me na aventura.
Tenho as plantas dos pés queimadas pelo branco improvável da areia viva e toda a gente sabe do incómodo de ter as plantas dos pés fervidas pelo eco do sol.
O que me salva agora do ardor da travessia, o que me dá sombra e oferece alívio, banho sagrado de paz e bem-estar numa dose de três quartos de um litro, é este Vinho Rosé geladíssimo, saborosíssimo, honesto e simples e fresco como uma pedra de gelo na nuca de deus.
O Rosé português de Azeitão que escorre da alma para as plantas dos pés, numa santa missão da mais pura medicina, é um vinho amável, curandeiro, solícito na sua rubra timidez de palheto.
Ao segundo copo, o meu corpo regressa ao paraíso perdido e, imerso já nessa suave utopia, rejuvenesce, vence o tempo e a temperatura, ergue-se dos reumáticos da idade para cantar a juventude.



A MORTE NECESSÁRIA

É preciso morrer: o cosmos precisa da morte para fazer circular os átomos e o tecido do espaço-tempo precisa da morte para manter a sua sorumbática consistência.
E tu, amigo, e eu, irmão, também necessitamos da cova como quem precisa de haxixe para um dia de praia ou de um scotch para depois do jantar.
A morte é o grande motor de redenção dos mundos e dos povos que infestam esses mundos e dos deuses que criaram tudo isto à semelhança de uma charada retirada da poeira catastrófica de uma estante de Alexandria.
É preciso morrer. O fim absoluto de todas as coisas é o objectivo primeiro e derradeiro do início absoluto de todas as coisas: ide e multiplicai-vos até ao apocalipse sacrificial, o fim orgíaco - celebração definitiva do sentido da vida.
É preciso morrer para perceber que a glória do caminho está no fim do caminho, que o regresso às cinzas é a única odisseia.
Estar vivo é estar a dever à morte. É preciso pagar a dívida. É preciso morrer.



AMIGOS NA PRAIA

Aqui, na praia aberta para todas as possibilidades, na praia em que é provável a existência de deus; aqui na orla do mar incerto, oceano permanente da poesia portuguesa; aqui na combinação subatómica de todos os factores possíveis; aqui no espaço que sobra entre a matéria e a anti-matéria, Belo pergunta a Kant: O que fizeste esta manhã?
Kant, claro, não se lembra. Mas entre o perguntar e o responder, estende-se todo um imperativo categórico de gaivotas.

Aqui, muito bem instalado na cadeira de baloiço do princípio da incerteza, aqui na praia inconcebível da matemática, entre o pulsar arrítmico do quasar e o recolhimento da esplanada do caos, recordo Platão e dou-lhe razão.



SOL DE LISBOA

Eu, que não conheço o mundo, que não sou viajado nem viajante, que tenho preguiça de low costs e alergias ao turismo; eu, o hipocondríaco dos quilómetros que me afastam de casa, ouso ainda assim acreditar que nalguns dias de Janeiro, como noutros de Julho, vivo na mais bela cidade do mundo.



FUNDAMENTOS DO BILHETE POSTAL

Ao cair da tarde, o Atlântico irrita-se ligeiramente com a nortada. No fundo azul profundo do céu, alguém com muitíssimo talento decidiu aplicar umas pinceladas de mutante púrpura, que navegam em exuberante evolução. Como se isto não bastasse ao aparato cenográfico, aproxima-se, lenta e solene, a inevitável traineira, no seu ruído de artrites, infestada pelo respectivo enxame faminto de gaivotas histéricas.
Entre a imagem, o som e o espanto, estou aqui esplendidamente estendido, a ver passar a multimédia.
Mais uns dias assim e começo a suspeitar que deus existe. Um deus esteta. Um deus que se está completamente nas tintas para o meu destino de infiel, mas que muito se aflige quando a tarde cai sem o seu apogeu cinematográfico.