quinta-feira, outubro 17, 2013

The Great American Divide.

"A house divided against itself cannot stand. I believe this government cannot endure, permanently half slave and half free. I do not expect the Union to be dissolved - I do not expect the house to fall - but I do expect it will cease to be divided. It will became all one thing or all the other."


Abraham Lincoln - Discurso na Convenção Republicana - 1858.


Agora que está provisoriamente afastada a possibilidade, muito real, do governo americano entrar, pela primeira vez na sua história, em incumprimento, enviando alegremente a economia mundial para uma nova recessão e ameaçando o muito precário equilíbrio geo-político do planeta (é preciso não esquecer que o primeiro credor da dívida americana é a República Popular da China), sinto-me compelido a deixar aqui no blog algumas considerações sobre o assunto, a saber:


1 - I Owe You: a questão da dívida.

Os Estados Unidos da América têm hoje uma dívida pública que representa 102% do seu Produto Interno Bruto. Esta situação só tem paralelo com o que aconteceu na Segunda-Guerra Mundial, altura em que os EUA venderam títulos do tesouro à louca, de forma a sustentar os custos de um conflito que decorreu em duas frentes complicadas e onerosas.
A dívida tem crescido quase exponencialmente desde que Reagan decidiu ganhar a guerra fria, aumentando os custos ligados à tecnologia militar e levando a União soviética à desagregação económica e, logo, política. Bush pai, que veio depois, seguiu o trend despesista, muito por causa da factura da primeira guerra do Iraque. Clinton, verdade seja dita, conseguiu estancar a hemorrogia, mas também porque exerceu os seus dois mandatos num clima muito favorável: nos anos 90 a história tinha chegado ao fim, diziam os crédulos, nos anos 90 a América tinha acabado de vencer o seu último inimigo, diziam os ingénuos, e todo o mundo seria mais tarde ou mais cedo uma grande América, diziam os doentes mentais. O resultado deste optimismo insano - e do consequente relaxe pacifista da administração Clinton - foi o que aconteceu a 11 de Setembro de 2001. Mas nessa altura, já não era o famoso Bill que ocupava a cadeira do poder, claro está: a história e a justiça são velhas desavindas.
Com a islamita declaração de guerra à América, Bush filho fez subir a fasquia da dívida de forma consistente e ininterrupta durante os oito anos do mandato. Mas mesmo apesar desta insaciável vontadade de gastar dinheiros públicos, os americanos foram mantendo a dívida abaixo do Produto Interno Bruto, facto que, de alguma forma, sempre servia a tranquilidade dos mercados, a saúde da economia e o equilíbrio da Força.
Isto até que chegou à Casa Branca, imagine-se, um marxista. Acto contínuo, a despesa começa a subir desenfreadamente e - pela primeira vez na história americana - não por razões ligadas à defesa, mas por mandato puramente ideológico e profundamente anti-americano. O socialismo de Obama torna-se manifesto com o crescimento da dimensão do estado e dos custos correspondentes e, sem nenhuma reforma ou programação estratégica que o justifique, a dívida começa logo a disparar. Isto sem que a sua grande causa (e a mais cara das causas) tenha sido posta em prática: o ObamaCare, uma espécie de Serviço Nacional de Saúde fora do tempo e da razão prática, universal e mandatório num país onde cerca de 60% dos cidadãos já têm cobertura privada. O plano vai custar para cima de 1.36 triliões de dólares até 2023 e aumentar a dívida pública americana para um patamar apocalíptico, o que faz sentido: o sonho de Obama é deixar cair a América para a poder sovietizar. Ou islamizar. A esquerda radical pensa invariavelmente que quanto pior, melhor. 

O cenário de uma América falida é equivalente a um armagedão de primeira categoria. Os Estados Unidos continuam a ser o primeiro motor económico mundial e são também o primeiro devedor líquido, sendo que a dívida americana é já, por muitos, considerada incobrável, e dada a sua dimensão, se esta economia colapsar não há reserva federal, não há troika maluca, não há dinheiro no mundo que consiga tapar o buraco. E vamos todos cair nele, porque a economia mundial não resistiria à falência do seu primeiro agente.




2 -
Two sides to every story: a ruptura ideológica.

O alinhamento partidário tem, nos Estados unidos, uma leitura geográfica: os estados litorais a nordeste e oeste, mais densamente povoados, são, grosso modo, democratas. Os estados do interior, são, tendencialmente, republicanos. Ora, este alinhamento geográfico é muito perigoso. Basta recordarmos a Guerra da Secessão, uma guerra civil entre "nações" territorialmente determináveis, para percebermos o perigo disto.
Acontece que, desde o princípio deste século, o eleitorado de centro tem vindo a cair para a esquerda e o eleitorado de esquerda tem vindo a declinar ideologicamente para uma filosofia política socializante, ao jeito europeu, fenómeno que não tem qualquer tradição substantiva no Partido Democrata. A 11 de Setembro de 2001 ninguém se atreveria a prever que em 2008 os Estados Unidos iam ter um presidente negro, socialista e muçulmano, mas a verdade é que o ataque às torres gémeas teve como resultado uma deriva à esquerda da sociedade urbana americana, o que não deixa de ser estranho. O assunto merece ser discutido com detalhe, mas não aqui e agora, senão nunca mais consigo acabar o post.
Esta recente deriva teve como consequência imediata o agravamento de uma ferida ideológica que sempre dividiu a América: de um lado da barricada, a classe média liberal das grandes cidades (liberal no sentido americano da palavra), próspera e pacifista, laica, que vê o estado como agente natural da ordem sobre o caos e que encara os impostos como um mal necessário à civilização. Do outro, o conservadorismo rural, que preza os bons costumes cristãos e a independência face ao estado (convicção que, por si só, justifica a presença de metralhadoras na dispensa), entende os impostos como um roubo e Washington como uma máquina totalitária, destinada a impedir a concretização do sonho americano que se consubstancia nisto: liberdade, prosperidade e quanto ao resto, cada um que trate da sua vida. Este eleitorado rural é capaz de mandar os filhos para o inferno das montanhas do Afeganistão sem pensar duas vezes, mas nunca vai perceber bem porque é que tem de pagar a operação ao rim de um compatriota em Boston. 
A radicalização desta divergência de fundo entre o americano liberal e o americano conservador plasma-se na guerra aberta que se tem travado nos últimos anos entre duas máquinas poderosas: a administração de Obama e o Tea Party.


3 - We The People: esclarecimento sobre o Tea Party.

Ao contrário da imagem propagada pelos media europeus e pelos media americanos ligados ao Partido Democrata (se exceptuarmos a Fox, todos os outros aparelhos multimediáticos estão sobre a esfera de influência dos democratas - Da CNN a Hollywood), o Tea Party não é um movimento armado de ignorantes-racistas-radicais-criacionistas-de-extrema-direita. O Tea Party é até o mais democrático, saudável e desorganizado fenómeno de tomada do poder político por parte dos cidadãos de que há registo desde o pós-guerra.
Nós na Europa, quando nos zangamos com os políticos, elegemos artistas de circo, humoristas, comentadores desportivos e ambientalistas. Os americanos, na mesma situação, elegem o dentista de Coyote Falls, o prospector do El Paso, a farmacêutica de New Everton e o caçador de crocodilos das Everglades O que têm em comum todos eles é serem conservadores não filiados no Partido Republicano e insatisfeitos com a performance deste partido na defesa dos valores que consideram fundamentais para o modo de vida americano, o primeiro dos quais, a Constituição. O Tea Party é um acérrimo defensor da Constituição de 1787, no sentido em que esta foi desenhada para proteger os cidadãos do Estado e dos seus abusos. O termo Tea Party é uma referência directa ao icónico evento que despoletou a revolução independentista de 1777, e diz muito sobre os objectivos da (des)organização. Em certo sentido, trata-se de um movimento libertário, embora resultante de uma mentalidade conservadora.
Sucede que este movimento teve uma larga e imediata aceitação no eleitorado republicano e ganhou, do dia para a noite, expressão institucional no seio do Partido. De tal forma que, principalmente no Congresso, os republicanos convencionais se tornaram de facto reféns dos congressistas eleitos pelo Tea Party. A ironia, é que o descoforto sentido por alguns senadores e congressistas republicanos em relação à nova geração de políticos amadores que se posicionou à sua direita, só decorre do decaimento do Partido Republicano para o centro, enquanto a esquerda decaía para o seu extremo.
Acresce que ninguém fala no elefante magenta que está no meio do salão dos acontecimentos: se é verdade que o Tea Party veio puxar o Partido Republicano para a Direita (que no fundo, é o seu lugar natural), a influência que extremistas de esquerda como Noam Chomsky e Michael Moore têm exercido sobre o eleitorado Democrata e que resultaram na eleição de Obama, tem empurrado o Partido Democrata para um lugar que lhe é desconhecido. Quero lembrar a gentil audiência que o Partido Democrata, até ao fim do Século XX, não era um partido de esquerda. Era um partido liberal. Por oposição ao partido conservador (o Republicano).


4 - Cut to the chase: o que de facto aconteceu entretanto.

O recente braço de ferro entre a bancada republicana do Congresso e a Administração de Obama tem sido tão deturpado pela imprensa que dá vontade de rir. Não li uma notícia que não culpasse directamente o Tea Party em particular e o Partido Republicano em geral pela crise orçamental, quando, objectivamente, a única das partes que se apresentou irredutível foi a residente na Casa Branca. Obama não negoceia o seu Plano de saúde com ninguém e muito menos com terroristas internos (leia-se: a tal milícia armada de ignorantes-racistas-radicais-criacionistas-de-extrema-direita). Ao jeito de Sócrates (o paralelo é inevitável), Obama ligou várias vezes para o infeliz speaker do Congresso, o republicano John Bohener, com ameaças, insultos e ataques de mau feitio. Obama, convenhamos, quer fazer do Obamacare uma espécie de caminho para a posteridade e, ele sim, está disposto a tudo para a garantir. 
E se equacionarmos a natureza da discórdia com a máxima clareza e a objectividade possível, percebemos que a posição do Tea Party é bem mais moderada. O que está em cima da mesa é o primeiro orçamento ObamaCare. Um orçamento que vai  aumentar brutalmente as despesas do estado, num quadro de contas públicas deficitárias, que faz da nação mais poderosa do mundo um país dependente da boa vontade dos credores. Um orçamento que vai subir os impostos num contexto económico difícil. Obama quer fazer passar este orçamento sem negociar. O Tea Party só o fará se certas características do ObamaCare forem revistas. Por exemplo: o Obamacare pretende ser universal. Mas não precisa realmente de o ser, já que grande parte da população americana está a coberto de seguros de saúde privados. 
Assim colocadas as coisas, quem é que é o radical aqui? E quem é que está a usar o orçamento como arma branca?


5 - End game: sobre o Estado a que as coisas chegaram.

É  minha convicção de que os próximos anos vão ser de guerra orçamental. E que a questão do orçamento deste ano está ainda muito longe de ser resolvida (em Dezembro vamos ter porrada outra vez). Não há motivação para a cedência por parte dos contendentes e a recompensa pela moderação não é de todo equivalente à glória da vitória final. Os congressitas americanos não são deputados europeus. São intermediários entre os seus eleitores e as esferas do poder central. São de facto influenciados pelo que pensam as pessoas que os elegeram porque estas pessoas estão atentas, mandam cartas, submetem petições, vão à luta. E há muita gente na América que não quer o Obamacare. Há muita gente na América que não quer pagar mais impostos, que não quer ficar a dever mais dinheiro a ninguém - principalmente a estranhos civilizacionais como a China - que não quer um estado gordo, endividado, dependente, um estado paizinho que toma conta das pessoas como se elas não soubessem tomar conta delas próprias. Há muita gente na América que não vai aceitar a socialização da América, e a velocidade a que se desloca a ruptura entre conservadores transformados em libertários de direita e liberais que agora são marxistas não dá sinais de abrandamento.
É minha convicção que os Estados Unidos estão a somar à decadência do seu império a implosão da unidade interna, a pulverização da identidade nacional e a falência do regime. 
Porque a divisão ideológica entre o povo americano está a tornar-se irresolúvel e porque essa divisão tem o seu correspondente geográfico, facilitando a lógica de trincheira e a razão de fronteira, é minha convicção que uma segunda guerra civil americana* será, a médio-longo prazo, inevitável. Como a primeira, será travada pela supremacia de um modelo económico: no século XIX, o modelo esclavagista desafiou o aparelho industrial e perdeu. No século XXI, o impulso libertário vai desafiar a imposição anacrónica de um estado social. E esta vai ser uma guerra que ninguém vai ganhar. Vai ser uma guerra de desintegração federal.
No entretanto, caminhamos inexoravelmente para o caos. Boa viagem.


* Informação pertinente sobre este cenário aqui, aqui e aqui.