muitos mais amigos terei até morrer, na proporção das guerras que o futuro guarda
para o velho continente.
Sei de amizade como poucos.
Sou um especialista e só não faço carreira académica desta erudição
porque não há nas academias um douto que saiba o suficiente sobre a amizade
para perceber que eu sei o que sei.
A amizade não é substância lírica e é difícil
escrever um poema belo,
um poema imortal e definitivo com tudo o que há para dizer.
O primeiro postulado que me ocorre
não é belo e muito menos lírico:
a amizade entre dois seres de sexo diferente é um mito.
Maricas e fufas à parte (não me atrevo a teorizar contextos étnicos),
a amizade entre dois seres do mesmo sexo é a única possível
porque um amigo não pode ser alguém a quem faças um broche e
há sempre sexo entre duas pessoas de sexo diferente,
mesmo quando essas duas pessoas não se querem sexualmente:
A negação da possibilidade de sexo é sexual como tudo.
O segundo postulado ainda é mais deprimente:
A amizade é uma abstração e não sobrevive à realidade impositiva
do ego.
É uma força vital enquanto motriz do amor próprio.
Sou amigo de Beltrano porque ele tem para mim uma qualidade rara:
a de me fazer sentir bem comigo.
Ou de outra maneira:a de me fazer sentir bem comigo.
Gosto mais de mim por ser amigo de Cicrano.
Decorre daqui um terrível Terceiro Postulado:
quanto mais apaixonada é uma determinada amizade,
mais volátil é a sua breve história.
Como a paixão romântica, o encantamento fraterno é de curta duração
- convenhamos, ninguém consegue fazer com que eu goste de mim por muito tempo.
O Quarto Postulado é óbvio: o equilibrio necessário à satisfação concomitante
dos egos envolvidos na relação é tão precário
como o das colunas de Hércules.
O Quinto Postulado é lapidar: um bom amigo é um excelente substituto
para o psicólogo
e se há desgraçados que consultam psicólogos é porque não souberam fazer amigos
e só devem frequentar o consultório o tempo suficiente para aprender a fazê-los.
O Sexto é proverbial: os amigos não são para as ocasiões.
Apesar do Quinto Postulado, nenhuma amizade resiste a uma overdose
de utilitarismo.
Podes embebedar-te todas as noites com o mesmo amigo.
Podes telefonar-lhe todos os dias, com uma anedota nova.
Podes viver com ele, trabalhar com ele, ir às putas com ele,
Podes infectar a vida dele com as tuas manias, os teus desejos, os teus gostos, mas
não deves abusar dos queixumes e das solicitações,
dos monólogos e das vaidades,
das preocupações e das falências,
dos medos e das angústias, afinal, nunca te esqueças:
tu existes para que o teu amigo se sinta bem com ele próprio (Segundo Postulado)
e como é que um amigo consegue fazer isso perante a tua constante
choradeira?
O Sétimo Postulado é um anexo do Sexto:
nunca peças dinheiro emprestado a um amigo. Os bancos estão lá precisamente
para te salvar dessa catástrofe.
O dinheiro, como o sexo, é um corpo cancerígeno no organismo da amizade.
Enquanto estás a dever dinheiro a um amigo, a amizade fica em suspenso.
E depois de lhe teres pago, nada vai ser como dantes, porque ele, num certo dia,
emprestou-te x.
Porque tu, num certo dia,
lhe pediste y.
De certa forma, pedir dinheiro a um amigo é como
abrir o motor de um automóvel:
sai sempre mais caro do que se está à espera.
O Oitavo Postulado é o reflexo do Sétimo:
Nunca emprestes dinheiro a um amigo. No máximo dos máximos, recomenda-lhe
um agiota.
Quando emprestas dinheiro a um amigo e ele te paga,
nunca vai reconhecer que de qualquer forma tu o ajudaste ou, ao contrário,
vai manifestar constantemente a sua gratidão
com acrescidas solicitações fiduciárias.
Não há amigo mais pedinchas que aquele orgulhoso por pagar a tempo e horas.
O amigo que não paga, ao menos, terá um vestígio de vergonha por não te ter pago
e assim, a possibilidade de te voltar a pedir dinheiro emprestado é reduzida.
Neste caso, porém, ficarás numa situação muito difícil:
se reclamas o dinheiro que lhe emprestaste, estarás a submetê-lo
a uma dose de humilhação absolutamente interdita
(conforme os Segundo e Quarto postulados)
e a submeter-te a ti próprio à calúnia: ofendido na sua sensibilidade de vigarista,
o teu amigo envenará a opinião pública com acusações de mesquinhez e avarice.
Mas se fazes de conta que não foste espoliado, aumentarás drasticamente
a possibilidade de novos pedidos de empréstimo.
E um amigo que não paga à primeira, não vai pagar à segunda, não é?
Ainda por cima, é muito mais fácil recusar um empréstimo logo à primeira tentativa.
Se emprestares agora e te recusares depois, o teu amigo vai sentir essa negativa
como uma inversão do trend afectivo que até aí vos unia. Ou pior ainda:
vai querer saber porque mudaste de estratégia!
O Nono Postulado diz assim: podes ir para a cama
com o parceiro sexual do teu amigo,
mas nunca por nunca lhe digas a verdade.
Mesmo que o teu amigo saiba perfeitamente que o encornaste à grande,
não há conversa, não há confissão, não há arrependimento expresso
nem vergonha assumida
que te salve do ódio e que o compense da humilhação.
Se queres manter a amizade, fica caladinho.
O Décimo Postulado avisa: sempre que ouvires alguém dizer
que o homem é um ser eminentemente social, desconfia.
Deve ser alguém que está desesperado por fazer amigos
e se há alguém no mundo que não serve para ser teu amigo - acredita -
é exactamente o infeliz que precisa disso como ninguém.
O Décimo Primeiro Postulado é terminal:
se pensas que a amizade te vai salvar do horror da vida
estás redondamente enganado.
Como tudo o resto na miserável existência a que foste condenado pelos deuses,
a amizade é uma abundante fonte de frustações, problemas e agonias.
Quando esperares lealdade, serás traído;
quando contares com a tolerância, serás julgado;
quando precisares de companhia, serás abandonado e
quando exigires a verdade, serás iludido.
O Décimo Segundo Postulado é de uma exigência atroz:
se não deres o teu máximo, se não te entregares completamente,
se não ofereceres, de mão beijada, tudo o que tens de melhor
àquele outro que é objecto do teu desejo fraterno
nunca saberás o que é um amigo a sério,
nunca irás experimentar o doce e grato prazer da amizade incondicional,
intensa, calorosa, generosa, épica,
aquele género onírico, utópico e contrafactual de amizade que, na verdade,
só existe na tua mente delirante.
A amizade é absolutamente contraproducente
e este é o Décimo Terceiro e último Postulado.