quarta-feira, novembro 26, 2014

Da banalidade do crime #2

O cliché dos últimos dez anos diz-nos que Mário Soares não deve ser levado a sério. Que está senil. Que está demente. Que é um cão raivoso.
Mas se Mário Soares não deve ser levado a sério, então os media não devem amplificar a sua voz brincalhona. Se está senil, a família devia impedir o homem de se pronunciar publicamente. Se é demente, devia ser internado. Se é um cão raivoso devia fazer-se com ele aquilo que se faz aos cães raivosos (metaforicamente, claro, que o Blogville não concorda com a pena de morte nem para cães raivosos nem para socialistas impenitentes).
Mas uma coisa é certa: o que disse hoje Soares à porta do chilindró onde - em boa hora - o juíz Carlos Alexandre decidiu colocar José Sócrates, é simplesmente criminoso. No contexto da situação actual, declarar à imprensa que o juíz é um malandro e que o processo é uma bandalheira, é criminoso. É comum ouvirmos dizer das declarações de Soares que são incendiárias. Pois bem, desta vez foram além disso. Configuram objectivamente várias ofensas à Constituição da República (artigos 13º, 25º, 26º e 32º) bem como ao seu Código Civil (art. 70º, nº1). São declarações criminosas.
Como é criminosa a incrível e despudorada violação do segredo de justiça por parte da mulher do advogado de Sócrates, ontem de madrugada, no Twitter.
Como é criminosa a opinião dos que atacam o processo para disfarçar a escandaleira.
Como é criminoso tentar convencer os portugueses que é ilegítimo julgarem politicamente Sócrates - e os socráticos - enquanto o processo não transitar em julgado (uma coisa é o processo penal, outra é o processo político).
Como é criminoso comparar o caso Tecnoforma com a dimensão das vilanias de que José Sócrates é suspeito.
Mas em Portugal vale tudo, mas mesmo tudo para que o PS não perca o seu estatuto de partido hegemónico, dono do estado, da razão e da moral. E se não salvador da pátria, porque no Largo do Rato nem se faz uso desta palavra, redentor de tudo o resto.

Há porém sinais indesmentíveis de que os portugueses estão a começar a ficar realmente fartinhos dos vermes que infestam o seu ecossistema. E estão a agir assertivamente a fim de combater, ou pelo menos colmatar, a praga. Em áreas tão distintas como a economia, a justiça e o jornalismo, é perceptível a corrente de ar fresco que tem vindo a melhorar substantivamente a qualidade atmosférica do país. E isto tem sido possível não por causa de manifestações ou de greves, não por causa de alguma decisão estratégica do regime, não por causa de alguma iluminada contribuição da Troika. Os portugueses estão a alterar o status quo estabelecido, as suas regras e a sua moral, com trabalho puro e duro. Com persistência e dignidade. Com coragem.

É preciso muita coragem para dar a José Sócrates a morada de Évora. Como vimos hoje, não é porém coisa que aconteça sem estrondo e promessas de apocalipse social. Afinal, neste momento, e também por causa das palavras criminosas de Mário Soares, é a sobrevivência do Partido Socialista que está em jogo.