terça-feira, novembro 25, 2014

Da banalidade do crime.

 “The sad truth is that most evil is done by people who never make up their minds to be good or evil.” 
Hannah Arendt

Hoje à noite, logo depois de sabermos que a medida de coacção aplicada a José Sócrates era a prisão preventiva, a SIC Notícias convidou o Miguel Sousa Tavares, a Clara Ferreira Alves e o Pacheco Pereira para opinarem sobre o acontecimento. Devo dizer que o Blogville não gosta nada do Miguel Sousa Tavares e da Clara Ferreira Alves (antigas desavenças aqui e aqui, respectivamente). E o debate demonstrou bem porquê. Longe de se mostrarem minimamente chocados ou sequer surpresos com o facto de um ex-primeiro-ministro da República Portuguesa ser suspeito de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção qualificada, o Miguel e a Clara preferiram fazer uma análise crítica à forma como o processo foi conduzido até agora. E por muito que o Pacheco Pereira lhes dissesse que a questão fundamental estava, nesse preciso momento, longe de ser aquela, não houve maneira de aplacar a indignação.
O Miguel e a Clara são só duas falências entre muitas outras falências que tenho ouvido e lido nos últimos 3 dias. A hipótese altamente inconveniente mas cada vez mais provável de se demonstrar em tribunal que José Sócrates é um bandido da pior espécie - e suas nefastas consequências para a esquerda em geral e para o Partido Socialista em particular - é tão alarmante e perigosa, que não há remédio senão atirar na direcção das autoridades judiciais. E atirar a matar. Sem meiguices nem poupanças de léxico.
Quando o Ministério Público e o juíz da inquirição deviam ser louvados por terem a coragem - e a competência - de fazer aquilo que precisava de ser feito, dada a ostentação ordinária e absolutamente despudorada de José Sócrates, o que têm recebido em troca são rajadas de projécteis moralistas, como se de grandes vilões da sagrada república se tratassem.

Daqui conclui-se que o problema em Portugal não se resume à competência e ao carácter dos constituintes da classe política. Nem aos altos funcionários do aparelho administrativo. Nem aos protagonistas do poder judicial. O problema é de conjunto. É na interacção entre estes poderes e destes com a sociedade que se gera o drama que decorre no Portugal contemporâneo. E essa interacção é muitas vezes conduzida pelos media. E essa condução é uma contaminação. Contamina o comportamento das esferas de poder, tanto quanto a qualidade da opinião pública. É preciso perceber que, para além dos escândalos financeiros e institucionais do estado e da banca, o aparelho mediático português estabelecido é também palco de vários banditismos: ideológicos, sociológicos e, claro, económicos. Os Migueis e as Claras que por aí andam muito preocupados com a república dos juízes, não invocam os princípios da sua utopia de trazer por casa em nome de Portugal, mas sim de um conceito ideológico, que é, por definição, de vocação universal. Protegendo o modelo, protegem-se como podem, porque também têm que fazer pela vida, como toda a gente.
Não vejo grande diferença moral entre políticos e advogados. Entre políticos e jornalistas. Entre políticos e analistas da política. Nem me apercebo bem das assimetrias éticas entre sindicalistas e ministros, patrões e trabalhadores, vilões e heróis. Em Portugal, o espectro mediático é preenchido por uma constante de gente vulgar. Gente que tem virtudes e ganâncias e competências e defeitos como toda a gente as tem. Ora o problema é que as elites funcionais são formadas por pessoas invulgares. E é aqui que encontramos a raiz do estado a que chegaram as coisas: a sociedade portuguesa não está a saber gerar pessoas de invulgar mérito técnico, intelectual e deontológico em quantidade suficiente para a ocupação crítica das lideranças estratégicas e sectoriais. Em certo sentido, e considerando a relativa juventude da nossa democracia, podemos dizer que Portugal sofre de banalidade precoce.

Hannah Arendt tentou explicar que o mal absoluto se encontra com mais frequência no seio da vulgaridade do que no contexto da excelência. José Sócrates, não sendo de todo uma figura de absolutos, é um excelente exemplo de homem mediano. E como tal, enquanto alto quadro do regime, foi porventura vítima da sua impreparação psíquica e intelectual e das terríveis tentações do poder. Motivado por uma ética ferozmente individualista, cedeu, provavelmente, à força gravítica de não ter qualidades notáveis.