segunda-feira, fevereiro 02, 2015

Da queda do homem.

"Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim."
 

Álvaro de Campos


A pior queda que Deus inventou não é aquela bíblica, do Homem Original. A pior queda, a queda livre e absoluta, é a de malhar no ridículo.
Convenhamos: o gajo que come a maçã proíbida na perspectiva de uma pinocada gratuita é tão trágico como um pomar. Mas o gajo que dá uma trinca no fruto seminal sem perspectiva de pinocada alguma é trágico como Wagner. A intensidade da tragédia não tem comparação por causa do índíce de ridicularia: Adão tinha uma razão para a queda aparatosa - uma razão sensata e válida que toda a gente dotada de orgãos genitais percebe perfeitamente. Acabou por fazer má figura. Mas não fez figura triste. E não há pior tortura para o homem moral que o suplício de fazer triste figura. Daí Cervantes: o Adão que cumpre a asneira histórica de trincar a maçã sem sequer ter a intenção de dar a queca na gaja é completamente quixotesco. E cai rapidamente na pior espécie de teatro grego que pode existir na história universal da literatura: o circo do ridículo.
A tragédia, como é claro, não advém da realidade; é, ao invés e invariavelmente, o produto de uma ilusão ou o resultado de um equívoco. É que não há tragédia sem farsa e não há existência sem a presença do ridículo. Na verdade, é precisamente com o rídiculo da existência que os deuses se vingam de nós.