| Crónica publicada a 29/10/15 | 
"Esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
 
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!”
Chico Buarque
O Brasil como anti-herói.
A biografia é, regra geral, um género literário que 
se desenvolve sobre a vida e a obra de um indivíduo. Ao relato da vida e
 da obra das nações, estamos habituados a chamar História. Porém, 
Suetónio, o eterno biógrafo dos 12 primeiros césares do Império Romano, 
discordaria muito provavelmente desta assumpção. Já Braudel, para dar um
 carismático exemplo, nunca aceitaria que a História fosse contaminada 
pelo carácter errático e insignificativo dos líderes que a protagonizam.
 Rebentado completamente com esta aborrecida conversa, Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, as autoras de “Brasil: Uma Biografia”  (Temas e Debates,
 2015), experimentam um género novo: uma síntese subjectiva e saborosa 
da história do seu país, visto como um personagem. E o personagem é um 
anti-herói à procura da redenção.
Naturalmente, o livro lê-se como um romance de 
aventuras. E precisamente porque recusa os cânones do ensaio 
historicista, as expectativas de rigor académico não podem ser tão altas
 como as do puro prazer da leitura. A obra tem umas boas 70 páginas de 
notas e referências bibliográficas, as autoras são distintas académicas 
do seu país, mas há um indisfarçável entusiasmo de opinião no correr de 
discurso que cativa e entretém e polemiza, mas que nem sempre convence. 
Há uma certa ligeireza na narrativa, quando se produzem afirmações 
lapidares como a de que o Ciclo do Açúcar no Brasil resultou na “maior importação forçada de trabalhadores africanos até hoje conhecida“, sem uma nota de rodapé que ajude a eloquência.
As autoras assumem, logo na introdução, um destino 
para o seu personagem: uma república à procura da utopia pela superação 
dos problemas étnicos e raciais, das disparidades económicas e dos 
atavismos ancestrais. Trata-se, claro, de uma biografia ideológica. 
Assar uma pessoa e comê-la, para honrar o deus da guerra, é bom. Assá-la
 sem a digerir, para honrar o deus católico, é mau. Temos colonizadores 
simpáticos (os holandeses são espectaculares) e temos colonizadores do 
género Darth Vader (adivinhe quem são, caro leitor). Temos ditadores 
razoáveis (Getúlio Vargas) e ditadores execráveis (os da junta militar).
 Temos um sistema esclavagista horroroso (o dos senhores do algodão na 
Virgínia) e um sistema esclavagista ainda pior (o dos senhores do açúcar
 em Pernanbuco). Temos regentes patéticos (D. João) e grandes líderes 
(Lula da Silva); partidos do mal e partidos do bem, governadores 
corruptos e impolutos, presidentes capazes e incapazes, etc., etc. Sendo
 que o critério entre o que é bom e o que é mau nunca transgride uma 
monótona versão sul-americana do que hoje em dia chamamos politicamente 
correcto.
O problema Portugal.
O leitor luso poderá ficar surpreendido pela 
criatividade da escrita em Português do Brasil. É que vai descobrir todo
 um léxico que o acordo ortográfico não alcança: para além do muito 
frequente e divertido uso dos verbos pipocar (estalar) 
e cultuar (prestar culto), ficamos a saber, por exemplo, que uma atitude
 pode ser dadivosa ou desabusada. O modelo económico no Brasil do século
 XVIII era escravista, uma coroação tem exuberância espetaculosa e, 
quando odiamos, estamos a manifestar um desafeto. Uma coligação é 
uma coalizão, uma amnistia (do grego amnestía) é uma anistia e, claro, 
quando alguém desaparece, dá-se uma desaparição. Na verdade, estas 
dissonâncias são até bem-vindas e, de qualquer forma, património da 
língua de Camões, no sentido estrito, lato e translato. Mas seria talvez
 justo que todos os que falam e escrevem o Português tivessem também 
essa mesma e imaginativa liberdade.
Notará também o leitor português a escassa 
consideração que é manifestada pela nação que afinal criou e unificou o 
Brasil. Os descobrimentos portugueses duram, num livro com 516 páginas 
de narrativa, uma página e meia. Os descobrimentos espanhóis 
ocupam igual página e meia, embora não se perceba, comparativamente, a 
importância destes últimos.
Dolorosamente entalada entre duas superpotências da 
altura, a França de Napoleão e a Inglaterra de Jorge III, a diplomacia 
de D. João, o príncipe regente, é, nesta obra, bastante caricaturada. 
Mas, dadas as contingências óbvias, não se percebe muito bem a análise 
crítica de Schwarcz e Starling, que evitam a enumeração de possíveis 
políticas alternativas. Caricata sim, será a fuga da corte para o Brasil
 e não a política de neutralidade seguida até aí. Porém, talvez porque é
 precisamente essa fuga que está na origem da independência do Brasil, 
não se encontra na obra uma crítica a esse ridículo e inédito episódio.
As autoras não gostam mesmo nada do Príncipe Regente e
 não cuidam muito em esconder a antipatia: as punições duras e 
exemplares de D. João sobre os revoltados são horríveis. As 
punições igualmente duras e exemplares do D. Pedro I, já imperador do 
Brasil independente, são muito menos pavorosas. A certa altura, parecem 
até desconhecer que Bocage não é apenas o nome de um papagaio de bordel 
e, quando chegamos ao capítulo da Primeira República, o modernismo de 22
 é glorificado e são registadas todas as influências europeias, mesmo as
 menos influentes, com a escandalosa omissão da geração de Orpheu, o que
 é estranho, sabendo-se o peso cultural que Pessoa e Almada ainda hoje 
têm no Brasil.
A citação preferida desta obra, mencionada várias vezes no texto, é: “Antes dos portugueses terem descoberto o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade“.
 Da autoria de Oswald de Andrade, a tirada é deveras inócua – pela 
simples razão de que o Brasil, como entidade geopolítica, antes de ser 
descoberto não existia -, mas sobretudo porque é de uma ingenuidade 
gritante. Objectivamente, sabemos muito pouco da vida dos indígenas 
antes de Álvares Cabral ter chegado ao Brasil, porque antes disso não 
existia, naqueles territórios do mundo, a disciplina da História. Não 
sabemos se eram mais felizes ou menos felizes, mais gordos ou mais 
magros, mais doentes ou mais saudáveis, mais quezilentos ou menos 
quezilentos. Não é por acaso que as duas académicas, na estrutura da sua
 narrativa, regressam ao tempo de antes do Descobrimento depois de 
relatarem o evento do Descobrimento. E reconhecem também que as tribos 
ameríndias já detinham aparelhos bélicos vastos e formais antes de serem
 “achados” (claro que, neste contexto, o verbo descobrir nunca é 
conjugado).
Esta ingenuidade é aliás 
transversal a toda a obra. Enquanto os brancos são uma praga do diabo, 
os índios são uma benção de Deus. Isto apesar do que recentes estudos 
têm vindo a demonstrar: na análise de mortes violentas per capita, a 
sociedade brasileira actual é muito menos perigosa do que a as 
sociedades ameríndias eram antes que os brancos infestassem o continente
 sul americano (1).
O Ciclo do Açúcar e os holandeses voadores.
De qualquer forma, o retrato do Brasil seiscentista é
 rico e detalhado, conduzindo o leitor para uma terra exótica, imensa, 
difícil. Um paraíso tropical e um inferno de horrores. Principalmente 
quando entramos no Ciclo do Açúcar, a primeira experiência económica 
globalmente significativa da colónia.
Neste segundo capítulo deparamos com um erro crasso, algo estranho, logo à partida, quando é afirmado que “os seres humanos fazem comida com praticamente tudo o que encontram.”
 Não é verdade. Os seres humanos alimentam-se de muito poucas espécies 
vegetais e animais, se considerarmos a totalidade das espécies 
potencialmente comestíveis (2). Mas a descrição do processo de cultivo 
da cana e produção do açúcar é descrito com detalhe e erudição, e 
encontramos neste capítulo raros momentos da clarividência que fogem ao 
politicamente correcto: é de facto preciso dizer, como aqui é dito, que 
antes dos brancos católicos eram os muçulmanos que controlavam o mercado
 esclavagista em África, principalmente na costa do Índico. E, do lado 
do Atlântico, eram os nativos que capturavam os escravos, lucrando 
também e substancialmente com o comércio infame.
As autoras dominam o processo esclavagista e detalham
 com rigor a sua iniquidade. Mas a tese de que a escravatura era mais 
dura no Brasil do que em qualquer outro lado do mundo, à altura, e que, 
consequentemente, os escravos seriam aqui mais rebeldes, fica claramente
 por demonstrar. Seja como for, e porque “não há escravatura boa ou má“,
 com a servidão e a brutalidade surgem as primeiras revoltas de 
escravos, percursoras de uma longa e agitada novela de levantamentos que
 mercam indelevelmente a história do Brasil.
Talvez porque Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling
 tenham ascendência anglo-saxónica e/ou protestante, a simpatia pelos 
holandeses é evidente e, em certos aspectos, ridícula. Entre 1637 e 
1654, a ocupação pirata do Recife é apresentada como um evento de 
progresso, prosperidade e ordem pública. Nassau é descrito como um 
aristocrata genial e governador iluminado como nenhum governador 
português terá sido. Omitindo o prejuízo económico devastador que os 
holandeses causaram à colónia e o carácter violento e corsário das suas 
investidas no Recife e em Pernambuco, estas páginas são de tal forma 
desviantes que o leitor fica com a sensação, obviamente errada, de que a
 economia esclavagista do ciclo do açúcar é apenas brutal quando 
conduzida pela coroa portuguesa.
O domínio do comércio do açúcar que os holandeses 
conseguem de facto estabelecer a partir da segunda metade do século XVII
 também é descrito de forma um pouco sensacionalista e, em algumas 
partes, em desacordo com autores de referência sobre este assunto, como 
Charles R. Boxer (3).
Neste capítulo, desenvolve-se a tese de que a violência no Brasil e o crónico deficit
 de cidadania resultam de um passado esclavagista e latifundiário. Este 
argumento não é disparatado, mas a objecção está no exemplo 
norte-americano: a cultura do algodão nos estados do sul foi 
esclavagista e latifundiária na mesma medida, e será pelo menos polémico
 afirmar que os americanos contemporâneos pensem no seu país como 
deficitário de cidadania.
Minas, utopias e revoltas.
É quando chegamos à era da actividade mineira que a 
narrativa ganha intensidade. Também aqui, é revelado um talento inegável
 para a composição de grandes aguarelas de época. O fresco está 
impecavelmente construído e detalhado. Mas o que prende mais o leitor 
será a dicotomia entre a utopia e a violência. A par dos 
experimentalismos idealistas que emergem nos quilombos (comunidades de 
escravos fugidos), nas breves experiências republicanas das localidades 
mineiras e no radicalismo das comunidades jesuíticas (S. Paulo tem 
origem numa destas comunidades), a colónia vibra de convulsões sociais. 
Fuga para a colónia.
Entretanto, na Europa, o ambiente é irrespirável, 
principalmente para o regente D. João, que depois de exasperar Napoleão 
com a sua lenta, irritante e prudente diplomacia acaba por fazer estalar
 o mau feitio do imperador francês. Sem margem de manobra e temendo as 
consequências de entregar a coroa ao desmando de Junot, D. João decide 
empreender a primeira e única transladação de uma corte imperial para 
uma colónia na história da humanidade.
O relato da fuga, que se dá já com o exército francês
 às portas de Lisboa, é entretido, colorido e muito de acordo com a 
recente e aclamada obra do australiano Patrick Wilcken (4). Apesar da 
confusão do embarque de 15.000 pessoas num curto hiato de algumas horas;
 apesar do caos e da precipitação; apesar do desespero de quem ficava, 
apesar do pânico de quem partia; é bem registado nestas páginas que não 
houve violência nem se registaram baixas, facto que raramente é 
mencionado – e valorizado – quando este assunto é discutido. E, apesar 
da impreparação logística, das 2 tormentas que assaltaram a frota, da 
falta de higiene, de água e de comida, a viagem decorreu também sem 
óbitos ou naufrágios, fenómeno espantoso, dado o contexto da odisseia. 
Ironia das ironias, o exército de Junot chega a Lisboa num estado 
lastimável, triunfante mas famélico e com pouco mais de 6000 homens, 
metade das tropas que tinham partido de Espanha.
Não é explícito no texto, mas percebe-se bem, neste 
capítulo, porque é que os ingleses tanto pressionaram a coroa portuguesa
 para desobedecer aos ultimatos de Napoleão. Com a ocupação francesa da 
metrópole, dá-se o fecho do mercado exportador português e francês. Em 
consequência, os ingleses passam a exportar de tudo para o Brasil, mesmo
 os artigos mais disparatados, incluindo patins de gelo (!). Dentro da 
mesma lógica, a crescente hostilidade da coroa britânica ao comércio de 
escravos no Atlântico sempre aconteceu mais por razões económicas e 
imperialistas do que por convicção humanista. Enquanto Jorge III 
governou a América, a mão-de-obra escrava utilizada nos campos do 
algodão não lhe incomodava a sensibilidade.
Quando D. João e a sua corte chegam ao Brasil, são recebidos por uma colónia onde “pipocam”
 demonstrações de apoio à coroa e de júbilo pela escolha do Brasil como 
destino da fuga. A corte instala-se no Rio de Janeiro e, mais uma vez, o
 relato destes anos é rico em textura e pormenor. Entre a sumptuosidade 
da realeza e a brutalidade exótica da colónia tropical, há um universo 
prolixo de contrastes. O Rio é, nas palavras de um viajante inglês “uma das mais sujas associações de seres humanos sob o céu” e o Brasil é “a terra das bofetadas“, única forma eficaz de contrariar a voracidade dos mosquitos.
Finalmente, a independência.
Os anos de exílio da corte no Brasil vão passando e a
 continuada instabilidade geo-política na Europa leva D. João a 
permanecer na colónia e a elevá-la a reino e sede do império, 7 anos 
depois de ter chegado. Com a queda de Napoleão e já coroado Rei depois 
da morte de sua mãe, D. João decide, em 1821, voltar à metrópole, 
deixando o filho primogénito, D. Pedro, como regente do reino do Brasil.
 Mas logo no ano seguinte, D. Pedro solta o famoso Grito do Ipiranga, 
lenda que as autoras respeitam como se de um facto histórico se 
tratasse, e que se deveu substancialmente às políticas quezilentas e 
irrealistas das cortes em Portugal, bem como ao facto mais prosaico de 
D. Pedro ter sido entretanto deserdado da coroa portuguesa em benefício 
do seu irmão mais novo, Miguel. Seja como for, em 1822 o Brasil ganha a 
sua independência.
Todo o processo foi de certa forma inédito: decorreu 
do transporte da corte para o Brasil e, depois, da instauração de uma 
monarquia independente pelo herdeiro da coroa imperial, quando na 
América do Sul a tradição independentista era profundamente republicana.
 A monarquia, que valeu no Brasil primordial como um polarizador 
identitário fortíssimo, constituiu uma forma bem-sucedida de manter a 
nação unida, ao contrário do que aconteceu com os territórios de língua 
castelhana, que se fragmentaram nas diversas repúblicas bolivarianas que
 conhecemos hoje. Mesmo assim, tratava-se de um regime profundamente 
anacrónico e contraditório: liberal e esclavagista, constitucional com 
tiques absolutistas, o Brasil de D. Pedro não é propriamente um estado 
do iluminismo. E, apesar da imagem literária do príncipe rebelde, o 
regime não respirava o oxigénio romântico da altura. Os acontecimentos 
da primeira Constituinte de 1823, que o Imperador mandou dissolver 
com argumentos de baioneta e a carta constitucional, draconiana, imposta
 por D. Pedro em 1824, pesam excessivamente na balança para podermos 
fazer outra análise.
Mas, algo estranhamente, sem concluir sequer 10 anos 
de reinado e abandonando os seus três filhos legítimos  (levou consigo 
apenas a filha bastarda), D. Pedro abdica e parte para Portugal, 
deixando o país para mais de dez anos de regências. Esta desistência 
nunca chega a ser bem explicada, na verdade. Podemos no entanto 
equacionar que o imperador não estaria à espera das contrariedades 
políticas que decorrem dos estados constitucionais e das complexidades 
regionais de um reino imenso, multi-étnico e fragmentado. Conta também 
para este totobola a oportunidade de recuperar a coroa metropolitana. 
Ironicamente, dado o seu registo de governante conservador, D. Pedro 
junta-se às hostes liberais, contra o seu irmão, na guerra civil que 
assola Portugal.
Com a retirada de D. Pedro, recomeçam os 
levantamentos a sério: a Cabanada de 1832 – reaccionária e restauradora,
 com 1072 presos e 2300 mortos; o Levantamento do Quilombo de Uribo, o 
Levantamento dos Malés na Bahia, interpretados exclusivamente por 
escravos muçulmanos, em 1835; a Sabinada de 1837, outra vez na Bahia; a 
Revolução Farroupilha ou Guerra dos Farrapos iniciada em 1835 mas que 
trouxe dez anos de guerra no Rio Grande do Sul; A Balaiada no Maranhão –
 com 12.000 mortos no ano de 1838; e, como se não bastasse, à convulsão 
generalizada somaram-se as guerras fronteiriças com o Uruguai e com a 
Argentina.
Graças à vitalidade própria das nações do novo mundo,
 e também à precocidade de D. Pedro II, o Brasil soube porém prosperar. O
 fim das regências trouxe a paz militar e social. O reinado voltava a 
circular uno à volta de um imperador moderno, finalmente romântico, 
apreciador das artes e das ciências, sensível e moderado. Pai e filho, 
os imperadores iniciáticos da nação sempre se preocuparam em encontrar 
um difícil elo de fusão cultural e estética entre as suas grandiosas 
origens dinásticas (estes dois Bragança eram também Bourbons e 
Habsburgos) e as idiossincrasias do império tropical. O filho foi melhor
 sucedido do que o pai, recorrendo ao imaginário da arte nativista e 
absorvendo-o como símbolo da coroa.
O ciclo de paz e prosperidade terminou com a Guerra 
do Paraguai. A vitória, muito pesada em mortos, assinala o apogeu e 
início do declínio da breve monarquia brasileira. Para além das 
rebeliões internas e das escaramuças fronteiriças, o Brasil não tinha 
uma história militar bem sucedida e a guerra com o Paraguai, apesar de 
ser travada contra uma força muito mais pequena e frágil, durou cinco 
dolorosos anos e custou cinco mil mortos e 20 mil feridos, dando lastro e
 margem de manobra aos movimentos abolicionistas e republicanos. Num 
ápice, o imperador passa a “emperrador”. Dado o seu carácter indeciso e a
 proverbial tendência para a inação, D. Pedro II assina a abolição da 
escravatura apenas em 1888, 66 anos depois da independência e 56 depois 
de ser coroado. Era tarde demais. No ano seguinte, uma operação militar 
relativamente discreta e sem apoio popular, faz cair a monarquia. D. 
Pedro II estava completamente alheado do processo revolucionário em 
curso e era de tal forma desrespeitado pelas elites militares que foi 
informado da sua destituição por uma comitiva de oficiais subalternos.
Até que enfim, a República.
A república manteve o carácter oligárquico das 
eleições que a carta constitucional de D. Pedro II tinha estabelecido. E
 criou uma elite militar que iria marcar a traço vermelho o futuro da 
nação e que começou cedo a mostrar o seu temperamento difícil. Em 1891, a
 Revolta da Armada faz cair Deodoro da Fonseca, o marechal que, 
entretanto, tinha mandado fechar o Congresso. Em 1893, nova revolta na 
marinha que visava destituir o marechal Floriano Peixoto, 
vice-presidente de Deodoro, que aproveitou a queda deste para usurpar o 
poder. Entrementes, eclode uma intentona federalista no sul do país, que
 dura dois anos. Finalmente, em 1894, cinco anos depois da instauração 
do regime, dão-se as eleições para o primeiro governo civil. Porém, no 
Brasil profundo, há forças reaccionárias em ascensão. O coronelismo, uma
 oligarquia atávica e violenta de latifundiários militarizados e 
plenipotenciários vai reduzir a margem de manobra da República e criar 
uma mão cheia de inimitáveis vilões para as futuras produções da Globo.
Esta é a época da imigração. Com a abolição da 
escravatura, a mão de obra é bem vinda e necessária. Entre 1904 e 1930 
chegam 79.000 imigrantes ao Brasil – um terço eram portugueses, mas há 
italianos, franceses, alemães e até japoneses. Na maior parte dos casos,
 o sonho de uma vida melhor acabava num destino de servidão. Esta é, 
também, a era da borracha, que foi breve mas suficiente para aburguesar o
 estado de Manaus em particular e o Norte em geral. Mesmo assim e apesar
 de uma visível tendência para a urbanização e a modernização 
infraestrutural, a sociedade brasileira mantém-se essencialmente rural. E
 teimosamente instável: os primeiros 20 anos do século XX mostram de 
novo o país tumultuoso e convulso. Em 1904, a Revolta do Rio nasce pelo 
descontentamento popular em relação às medidas que visavam erradicar as 
doenças endémicas. O país é um “imenso hospital”. As pessoas morrem aos 
magotes, vítimas de cólera, febre amarela, varíola, peste bubónica, 
doença das chagas, paludismo e uma quantidade inumerável de infecções do
 tracto digestivo.
De 1910 a 1920, surge um novo ciclo de sobressaltos 
revolucionários. A Revolta da Chibata, levantamento de marinheiros 
(ainda e sempre a marinha!) contra a aplicação de castigos físicos, a 
Revolta da Escola Militar da Praia Vermelha, a Revolta dos Sargentos e a
 Primavera de Sangue, são movimentos militares. Mas a estes junta-se a 
proverbial rebeldia civil, com os levantamentos do Contestado, do 
Jaazeiro, do Caldeirão, do Pau-de-Colher e dos Canudos.
O levantamento de Canudos, talvez o mais expressivo 
desta época, tem origem numa comunidade com o mesmo nome, que ensaiou 
uma modesta utopia baseada na pequena propriedade rural. Os vários 
exércitos enviados pela república foram sucessivamente derrotados até 
que a última excursão militar, armada até aos dentes, prometeu poupar as
 vidas dos rendidos, de forma a evitar mais baixas. A promessa foi, no 
entanto, ignorada e a maior parte da população foi fuzilada. Os poucos 
revoltosos que sobreviveram à chacina foram viver, em condições 
miseráveis, para os subúrbios do Rio de Janeiro, dando início à 
tipologia da favela, uma planta muito comum na região de Canudos.
Para ajudar à festa, a imigração, principalmente a 
imigração italiana, trouxe o anarco-sindicalismo e a consequente 
organização política dos trabalhadores, pelo que estes primeiros anos da
 república foram marcados por um surto recordista de greves operárias. 
Entre 1900 e 1920 decorreram cerca de 400 (!).
No que diz respeito aos direitos civis, o novo regime
 não trouxe melhorias por aí além. Os negros libertos e seus 
descendentes lutavam com enormes dificuldades para aceder ao mercado de 
trabalho; os índios, que entretanto tinham perdido o estatuto simbólico 
que a monarquia utilizara para se legitimar, eram agora perseguidos ou 
ignorados. Por outro lado, a lei eleitoral permanecia extremamente 
restritiva: numa república de coronéis, votavam em 1930, 5,6% dos 
cidadãos.
A República segundo Getúlio.
A Segunda República resulta de uma parafernália de 
conspirações, assassinatos, rebeliões, disputas regionais, 
fraudes eleitorais e inconformismo com os respectivos resultados. O 
regime decaia para o caos. A revolução de 1930 é organizada e executada 
com precisão militar, aniquilando a República Velha e colocando Getúlio 
Vargas no poder. Getúlio fundou uma ditadura de inspiração trabalhista, 
que durou 15 anos. Reformou a administração pública e deu direitos e 
garantias aos trabalhadores, proibindo em simultâneo os movimentos 
operários e os partidos comunistas. Quando em 1932 o estado paulista 
ateia a fogueira do separatismo e pega nas armas (“Por S. Paulo com o Brasil, se for possível; por S. Paulo e contra o Brasil, se for preciso.”), Getúlio Vargas conta com o apoio popular e dos militares para ganhar a guerra.
Em 1933 a lei eleitoral concede pela primeira vez o 
voto universal e as eleições resultam numa constituição tendencialmente 
inclusiva, que obrigava ao equilíbrio de poderes. Porém, as múltiplas e 
impenitentes insurreições militares de inspiração marxista nos anos 30 
ofereceram a Getúlio a desculpa que precisava para instaurar o estado de
 sitio e a suspensão dos direitos constitucionais, eternizando-se no 
poder. Através de uma golpada sem tiros inaugurou em 1937 o Estado Novo –
 um regime repressivo, que recorria à tortura e, claro, à censura.
A institucionalização do samba e do carnaval, e a 
curiosa e irónica elevação do mestiço a herói nacional, foram 
instrumentos da propaganda nacionalista, num modelo de Estado Novo que, 
seguindo alguns dos parâmetros do fascismo europeu, apresentava 
fundamentos trabalhistas e corporativos muito particulares.
A participação do Brasil na 2ª Guerra Mundial, ao 
lado dos aliados, teve como moeda de troca o investimento americano no 
tecido industrial do país, fenómeno que veio marcar sua a história 
económica durante décadas.
Pressionado por variadíssimos sectores da sociedade, 
Getúlio Vargas vê-se obrigado a marcar eleições e 15 anos depois de 
chegar ao poder, em 1946, concede o acto eleitoral que trouxe de novo a 
democracia e uma constituição que durou 20 anos. Ainda assim, o ditador 
regressa nas eleições de 50 à luta política, graças a um habilidoso 
negócio de alianças em todo o país. A este propósito, há que dizer que a
 densidade labiríntica da política do século XX brasileiro torna a 
evolução dos acontecimentos bem  difícil de acompanhar, dada a 
complexidade de interesses e partidos instalados nas diversas regiões e 
estados da federação.
Uma vez eleito, Getúlio seguiu uma política de 
autonomia energética criando a Petrobras e inaugurando os fundamentos da
 futura Eletrobras. A estratégia de relançamento industrial de base – 
com investimentos estatais na siderurgia e na indústria automóvel – 
estavam de acordo com uma economia nacionalista em rota de colisão com o
 capital internacional. Acto contínuo, os grandes conglomerados 
industriais norte-americanos desinvestem no Brasil e as instituições 
credoras pressionam o governo, na firme intenção de liquidar dentro dos 
prazos o crédito que tinham fornecido ao regime. A queda do governo de 
Getúlio começa precisamente com a reacção do capitalismo internacional. E
 acaba com o triunfo dos seus velhos inimigos: A UDN de Carlos Lacerda, 
as forças armadas e a imprensa.
Um atentado falhado, que pretendia eliminar Lacerda, 
coloca a força aérea na surpreendente e muito pouco ortodoxa posição de 
polícia plenipotenciária. A investigação conclui, acertadamente, que por
 trás do atentado estava o chefe dos serviços de segurança de Getúlio. 
E, numa busca efectuada ao palácio presidencial, obtém e divulga 
documentos que põem a nu a corrupção que consumia o regime. Incapaz de 
aceitar o seu fim político, Getúlio suicida-se e a reacção popular de 
pesar e revolta travou o ímpeto golpista dos militares.
Mas logo nas eleições de 1955, que elegeram 
Kubitschek, registam-se levantamentos da tropa, dos quais o mais 
expressivo é o de Jacarépagua, em 1956; e tentativas de golpe de estado,
 destacando-se a que resultou de uma conspiração entre a UDN e os 
militares.
Da Bossa Nova à ditadura militar.
Apesar de tudo, o governo de Juscelino Kubitschek ia 
sobrevivendo às convulsões, tendo-se afirmado com uma agenda de 
crescimento económico acelerado, os famosos “50 anos em 5“, que 
apostava em infra-estruturas industriais e rodoviárias e na economia de 
consumo. Pragmático e liberal, Kubitschek coloca o nacionalismo na 
gaveta e permite a internacionalização da economia e a reentrada de 
capital estrangeiro. Ambicioso, manda construir a cidade de Brasília no 
planalto central, uma área do território que, na altura, consistia numa 
espécie de nenhures.
Estes anos de democracia são os anos da Bossa Nova e 
do Neo-Realismo, fenómenos culturais que iriam marcar o cenário da 
música, do cinema e da literatura por décadas, no Brasil. Entretanto, no
 mundo rural, o tempo cristalizou. Reina o sistema de propriedade 
latifundiária de sempre, e a oligarquia dos coronéis sobrevive às 
décadas. Por outro lado, a inflação e o aumento do deficit público volta
 a castigar a economia brasileira.
Jânio Quadros, o presidente que se segue, trai a UDN,
 que o apoiou nas eleições de 1961, com uma política externa de 
aproximação a Cuba e ao bloco soviético. Dá-se mal com o Congresso e com
 o modus operandi da democracia constitucional e acaba por entregar o 
país a João Goulart, o seu vice-presidente, seis meses depois de ser 
eleito. Goulart assume a presidência, mas não sem que antes o país fique
 de novo à beira de uma guerra civil. Porém, a inflação, que rondava os 
80%, e a imperícia de Goulart na gestão dos levantamentos militares e 
das invectivas da oposição deitam tudo a perder: o golpe militar de 64 
decorreu sem grandes dificuldades e instalou uma junta totalitária que 
durou durante 21 anos.
A junta militar retira os comunistas do congresso, 
alia-se aos interesses industriais e coloca os generais no poder. A 
política de liberalização e internacionalização da economia e a redução 
do papel do estado levou ao crescimento económico mas também e novamente
 ao aumento desenfreado da inflação, que em 1985 iria atingir os 285%, 
bem como ao agravamento do deficit externo.
A ditadura trouxe aquilo que as autoras designam como
 “a burocracia da violência”, uma oligarquia militar que utilizava a 
censura, a eliminação de direitos, a repressão, a tortura e o genocídio 
como instrumentos de poder. E nos últimos anos do regime o país tinha 
afinal os mesmos problemas de sempre: desigualdades sociais e económicas
 gritantes, dívida externa incontrolável, inflação galopante.
De volta à democracia.
Enquanto a primeira fase da luta contra a junta 
militar era interpretada por forças marxistas (na clandestinidade) e 
católicas (à vista de toda a gente), a sociedade civil foi exigindo 
progressivamente o regresso de eleições livres e da democracia. Esta 
oposição à ditadura tinha no entanto características diferentes. 
Recusava a luta armada e o apelo revolucionário, preferindo a 
demonstração nas ruas e a denúncia nos meios de comunicação social. 
Jornalistas, artistas, intelectuais, ídolos do desporto, estudantes e 
até empresários empenharam-se no combate, enquanto os operários abalavam
 o país com greves longas, que resultaram na sindicalização dos 
movimentos laborais e no nascimento do Partido Trabalhista.
O último general da junta, João Figueiredo, em 
desespero de causa, promulgou uma amnistia geral: militantes na 
clandestinidade, presos políticos e activistas no exílio foram 
perdoados. Esta lei, desgraçadamente, tornou também possível o 
impensável: garantir a impunidade dos carrascos da ditadura, que ainda 
hoje são inimputáveis.
A campanha pelas eleições directas de 84/85 teve 
grande adesão popular, mas foi chumbada no Congresso. Finalmente, em 
1985, através da realização de eleições indirectas, Tancredo Neves, o 
candidato conservador, foi eleito, mas morreu antes de tomar posse. O 
seu vice, José Sarney, sucedeu-lhe. A constituição da Nova República foi
 aprovada em 88 e está em vigor até hoje.
Os historiadores seguem geralmente uma regra deveras 
sensata: os 50 anos anteriores ao momento em que um trabalho é realizado
 são poupados à análise. Infelizmente, Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. 
Starling não respeitam esta lei de ouro, prejudicando em muito a sua 
obra. A forma como retratam as eleições que opuseram Collor de Melo a 
Lula da Silva é tendenciosa e completamente escusada, mesmo considerando
 o estilo biográfico a que recorreram na construção da narrativa. Todo o
 texto que se segue à constituição de 88 é um exercício de opinião, 
incompatível com a ciência da História.
Conclusão: paraíso tropical ou paraíso perdido?
A leitura de “Brasil: Uma Biografia” é, muitas
 vezes, extenuante. Não por culpa das autoras, que se esforçam, com 
grande sucesso, em construir uma narrativa vivaz e cativante, mas porque
 o seu herói é um país conturbado e torturado. Um país turbulento, 
volátil, rebelde, inquieto, múltiplo. Um pais de levantamentos, golpes 
de estado, revoluções e guerras civis; um país dividido na sua grandeza 
étnica e territorial, revoltado contra si próprio, vítima brutal e 
recorrente das suas forças militares e para-militares.
Um dos problemas orgânicos da nação brasileira 
decorre do acesso ao poder político por parte das forças armadas. Este 
acesso foi institucionalizado na Primeira República, mas já era latente 
no fim da monarquia. A presença das elites militares nas instituições 
políticas criou um ciclo doentio e violento, que só foi quebrado nos 
anos 80 do século XX. Até porque a tropa serviu, historicamente, muito 
mais para resolver problemas internos do que externos. As guerras de 
fronteira são, paradoxalmente para uma nação tão virulenta, escassas. 
Mas as intervenções do exército, da marinha e da força aérea dentro dos 
limites territoriais do país são extremamente frequentes, e 
frequentemente sangrentas.
O
 Brasil é também uma nação dividida entre os interesses dos 
conglomerados económicos internacionais, um forte sentimento 
nacionalista por parte das elites que governam e o permanente sentimento
 de injustiça social das populações. A corrupção generalizada, as 
sucessivas crises económicas, o peso esmagador da dívida pública e a 
miséria que atinge largas faixas sociais nunca são fenómenos de 
conjuntura. O país vive estruturalmente assolado por estes problemas de 
fundo.
A conclusão do livro tem 10 páginas, numa obra de 
516, como se as autoras tivessem medo das sua própria síntese, mas 
começa logo com a desagradável citação de Oswald de Andrade e é, 
basicamente, um deslocado e propagandístico manifesto em favor de Lula 
da Silva. A corrupção que grassou no PT enquanto força de poder no 
Brasil é mencionada, mas cuidadosamente contextualizada como parte do 
fenómeno que é historicamente transversal no país. Quando até duas 
prestigiadas historiadoras chegam a este nível de condescendência, 
começamos a compreender porque é que o Brasil tem dificuldades em 
resolver os problemas estruturais.
A incapacidade de fazer as pazes com as suas origens 
também impede os brasileiros de sentirem a pátria de uma forma um pouco 
mais saudável. Uma nação que deve a sua unidade e muito da sua 
identidade à língua portuguesa e aos Braganças, que consolidaram um 
território dividido e que o fizeram independente, devia ter uma atitude 
mais conciliatória com Portugal. E, mais uma vez, se são até os 
académicos os primeiros a desprezar a história e a cultura portuguesa, 
que podemos esperar de todos os outros?
A este propósito, uma última nota. Aceitando como 
válidas as recentes conclusões da História Contrafactual (5), que 
dimensionam a disciplina numa perspectiva não determinista, seria talvez
 pertinente fazermos esta pergunta: se a corte de D. João não tivesse 
fugido do lamentável exército de Junot, que realidade seria hoje esta 
realidade a que chamamos Brasil? Provavelmente, um conjunto de estados 
independentes, e talvez nem todos de língua oficial portuguesa.
Mas não será o Brasil uma nação imensa, precisamente 
porque causa das suas contradições, da sua dialéctica vivência 
psico-social, dos seus triunfos e misérias? Tesouro vivo em diversidade 
humana, mosaico de glórias libertárias e totalitarismos, padrão dos 
descobrimentos em carro de carnaval, quinto império ao contrário, este é
 o país da Utopia. Do experimentalismo de um estado novo trabalhista à 
ditadura militar de vocação liberal, das laboratoriais comunidades 
rurais e operárias às cidades de libertos, o que não falta na história 
brasileira são manobras de engenharia social, mais ou menos ingénuas, 
mais ou menos draconianas, na senda de uma ideia de paraíso. O problema,
 porém, está naquilo que um argentino, Jorge Luís Borges, sintetizou 
assim:  “Não há outros paraísos senão os paraísos perdidos.”
Distopia tropical e sonho de uma noite de verão, o 
paraíso perdido será talvez o tal super-herói desta biografia. Mas com 
promessas de ser reencontrado.
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(1) Walker and Bailey; “Body Counts In Lowland South American Violence” (ScienceDirect, 2013);
(2) Jared Diamond; “Armas Germes e Aço – Os Destinos das Sociedades Humanas” (Temas e Debates, 2015);
(3) Patrick Wilcken; “Império à Deriva – A Corte Portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1921 (Livraria Civilização Editora);
(4) Charles R. Boxer; “O Império Marítimo Português 1415-1825” (Edições 70, 2011);
(5) Niall Ferguson (Coord.); “História Virtual” (Tinta da China, 2006).

