Crónica publicada a 29/10/15 |
"Esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!”
Chico Buarque
O Brasil como anti-herói.
A biografia é, regra geral, um género literário que
se desenvolve sobre a vida e a obra de um indivíduo. Ao relato da vida e
da obra das nações, estamos habituados a chamar História. Porém,
Suetónio, o eterno biógrafo dos 12 primeiros césares do Império Romano,
discordaria muito provavelmente desta assumpção. Já Braudel, para dar um
carismático exemplo, nunca aceitaria que a História fosse contaminada
pelo carácter errático e insignificativo dos líderes que a protagonizam.
Rebentado completamente com esta aborrecida conversa, Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, as autoras de “Brasil: Uma Biografia” (Temas e Debates,
2015), experimentam um género novo: uma síntese subjectiva e saborosa
da história do seu país, visto como um personagem. E o personagem é um
anti-herói à procura da redenção.
Naturalmente, o livro lê-se como um romance de
aventuras. E precisamente porque recusa os cânones do ensaio
historicista, as expectativas de rigor académico não podem ser tão altas
como as do puro prazer da leitura. A obra tem umas boas 70 páginas de
notas e referências bibliográficas, as autoras são distintas académicas
do seu país, mas há um indisfarçável entusiasmo de opinião no correr de
discurso que cativa e entretém e polemiza, mas que nem sempre convence.
Há uma certa ligeireza na narrativa, quando se produzem afirmações
lapidares como a de que o Ciclo do Açúcar no Brasil resultou na “maior importação forçada de trabalhadores africanos até hoje conhecida“, sem uma nota de rodapé que ajude a eloquência.
As autoras assumem, logo na introdução, um destino
para o seu personagem: uma república à procura da utopia pela superação
dos problemas étnicos e raciais, das disparidades económicas e dos
atavismos ancestrais. Trata-se, claro, de uma biografia ideológica.
Assar uma pessoa e comê-la, para honrar o deus da guerra, é bom. Assá-la
sem a digerir, para honrar o deus católico, é mau. Temos colonizadores
simpáticos (os holandeses são espectaculares) e temos colonizadores do
género Darth Vader (adivinhe quem são, caro leitor). Temos ditadores
razoáveis (Getúlio Vargas) e ditadores execráveis (os da junta militar).
Temos um sistema esclavagista horroroso (o dos senhores do algodão na
Virgínia) e um sistema esclavagista ainda pior (o dos senhores do açúcar
em Pernanbuco). Temos regentes patéticos (D. João) e grandes líderes
(Lula da Silva); partidos do mal e partidos do bem, governadores
corruptos e impolutos, presidentes capazes e incapazes, etc., etc. Sendo
que o critério entre o que é bom e o que é mau nunca transgride uma
monótona versão sul-americana do que hoje em dia chamamos politicamente
correcto.
O problema Portugal.
O leitor luso poderá ficar surpreendido pela
criatividade da escrita em Português do Brasil. É que vai descobrir todo
um léxico que o acordo ortográfico não alcança: para além do muito
frequente e divertido uso dos verbos pipocar (estalar)
e cultuar (prestar culto), ficamos a saber, por exemplo, que uma atitude
pode ser dadivosa ou desabusada. O modelo económico no Brasil do século
XVIII era escravista, uma coroação tem exuberância espetaculosa e,
quando odiamos, estamos a manifestar um desafeto. Uma coligação é
uma coalizão, uma amnistia (do grego amnestía) é uma anistia e, claro,
quando alguém desaparece, dá-se uma desaparição. Na verdade, estas
dissonâncias são até bem-vindas e, de qualquer forma, património da
língua de Camões, no sentido estrito, lato e translato. Mas seria talvez
justo que todos os que falam e escrevem o Português tivessem também
essa mesma e imaginativa liberdade.
Notará também o leitor português a escassa
consideração que é manifestada pela nação que afinal criou e unificou o
Brasil. Os descobrimentos portugueses duram, num livro com 516 páginas
de narrativa, uma página e meia. Os descobrimentos espanhóis
ocupam igual página e meia, embora não se perceba, comparativamente, a
importância destes últimos.
Dolorosamente entalada entre duas superpotências da
altura, a França de Napoleão e a Inglaterra de Jorge III, a diplomacia
de D. João, o príncipe regente, é, nesta obra, bastante caricaturada.
Mas, dadas as contingências óbvias, não se percebe muito bem a análise
crítica de Schwarcz e Starling, que evitam a enumeração de possíveis
políticas alternativas. Caricata sim, será a fuga da corte para o Brasil
e não a política de neutralidade seguida até aí. Porém, talvez porque é
precisamente essa fuga que está na origem da independência do Brasil,
não se encontra na obra uma crítica a esse ridículo e inédito episódio.
As autoras não gostam mesmo nada do Príncipe Regente e
não cuidam muito em esconder a antipatia: as punições duras e
exemplares de D. João sobre os revoltados são horríveis. As
punições igualmente duras e exemplares do D. Pedro I, já imperador do
Brasil independente, são muito menos pavorosas. A certa altura, parecem
até desconhecer que Bocage não é apenas o nome de um papagaio de bordel
e, quando chegamos ao capítulo da Primeira República, o modernismo de 22
é glorificado e são registadas todas as influências europeias, mesmo as
menos influentes, com a escandalosa omissão da geração de Orpheu, o que
é estranho, sabendo-se o peso cultural que Pessoa e Almada ainda hoje
têm no Brasil.
A citação preferida desta obra, mencionada várias vezes no texto, é: “Antes dos portugueses terem descoberto o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade“.
Da autoria de Oswald de Andrade, a tirada é deveras inócua – pela
simples razão de que o Brasil, como entidade geopolítica, antes de ser
descoberto não existia -, mas sobretudo porque é de uma ingenuidade
gritante. Objectivamente, sabemos muito pouco da vida dos indígenas
antes de Álvares Cabral ter chegado ao Brasil, porque antes disso não
existia, naqueles territórios do mundo, a disciplina da História. Não
sabemos se eram mais felizes ou menos felizes, mais gordos ou mais
magros, mais doentes ou mais saudáveis, mais quezilentos ou menos
quezilentos. Não é por acaso que as duas académicas, na estrutura da sua
narrativa, regressam ao tempo de antes do Descobrimento depois de
relatarem o evento do Descobrimento. E reconhecem também que as tribos
ameríndias já detinham aparelhos bélicos vastos e formais antes de serem
“achados” (claro que, neste contexto, o verbo descobrir nunca é
conjugado).
Esta ingenuidade é aliás
transversal a toda a obra. Enquanto os brancos são uma praga do diabo,
os índios são uma benção de Deus. Isto apesar do que recentes estudos
têm vindo a demonstrar: na análise de mortes violentas per capita, a
sociedade brasileira actual é muito menos perigosa do que a as
sociedades ameríndias eram antes que os brancos infestassem o continente
sul americano (1).
O Ciclo do Açúcar e os holandeses voadores.
De qualquer forma, o retrato do Brasil seiscentista é
rico e detalhado, conduzindo o leitor para uma terra exótica, imensa,
difícil. Um paraíso tropical e um inferno de horrores. Principalmente
quando entramos no Ciclo do Açúcar, a primeira experiência económica
globalmente significativa da colónia.
Neste segundo capítulo deparamos com um erro crasso, algo estranho, logo à partida, quando é afirmado que “os seres humanos fazem comida com praticamente tudo o que encontram.”
Não é verdade. Os seres humanos alimentam-se de muito poucas espécies
vegetais e animais, se considerarmos a totalidade das espécies
potencialmente comestíveis (2). Mas a descrição do processo de cultivo
da cana e produção do açúcar é descrito com detalhe e erudição, e
encontramos neste capítulo raros momentos da clarividência que fogem ao
politicamente correcto: é de facto preciso dizer, como aqui é dito, que
antes dos brancos católicos eram os muçulmanos que controlavam o mercado
esclavagista em África, principalmente na costa do Índico. E, do lado
do Atlântico, eram os nativos que capturavam os escravos, lucrando
também e substancialmente com o comércio infame.
As autoras dominam o processo esclavagista e detalham
com rigor a sua iniquidade. Mas a tese de que a escravatura era mais
dura no Brasil do que em qualquer outro lado do mundo, à altura, e que,
consequentemente, os escravos seriam aqui mais rebeldes, fica claramente
por demonstrar. Seja como for, e porque “não há escravatura boa ou má“,
com a servidão e a brutalidade surgem as primeiras revoltas de
escravos, percursoras de uma longa e agitada novela de levantamentos que
mercam indelevelmente a história do Brasil.
Talvez porque Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling
tenham ascendência anglo-saxónica e/ou protestante, a simpatia pelos
holandeses é evidente e, em certos aspectos, ridícula. Entre 1637 e
1654, a ocupação pirata do Recife é apresentada como um evento de
progresso, prosperidade e ordem pública. Nassau é descrito como um
aristocrata genial e governador iluminado como nenhum governador
português terá sido. Omitindo o prejuízo económico devastador que os
holandeses causaram à colónia e o carácter violento e corsário das suas
investidas no Recife e em Pernambuco, estas páginas são de tal forma
desviantes que o leitor fica com a sensação, obviamente errada, de que a
economia esclavagista do ciclo do açúcar é apenas brutal quando
conduzida pela coroa portuguesa.
O domínio do comércio do açúcar que os holandeses
conseguem de facto estabelecer a partir da segunda metade do século XVII
também é descrito de forma um pouco sensacionalista e, em algumas
partes, em desacordo com autores de referência sobre este assunto, como
Charles R. Boxer (3).
Neste capítulo, desenvolve-se a tese de que a violência no Brasil e o crónico deficit
de cidadania resultam de um passado esclavagista e latifundiário. Este
argumento não é disparatado, mas a objecção está no exemplo
norte-americano: a cultura do algodão nos estados do sul foi
esclavagista e latifundiária na mesma medida, e será pelo menos polémico
afirmar que os americanos contemporâneos pensem no seu país como
deficitário de cidadania.
Minas, utopias e revoltas.
É quando chegamos à era da actividade mineira que a
narrativa ganha intensidade. Também aqui, é revelado um talento inegável
para a composição de grandes aguarelas de época. O fresco está
impecavelmente construído e detalhado. Mas o que prende mais o leitor
será a dicotomia entre a utopia e a violência. A par dos
experimentalismos idealistas que emergem nos quilombos (comunidades de
escravos fugidos), nas breves experiências republicanas das localidades
mineiras e no radicalismo das comunidades jesuíticas (S. Paulo tem
origem numa destas comunidades), a colónia vibra de convulsões sociais.
Fuga para a colónia.
Entretanto, na Europa, o ambiente é irrespirável,
principalmente para o regente D. João, que depois de exasperar Napoleão
com a sua lenta, irritante e prudente diplomacia acaba por fazer estalar
o mau feitio do imperador francês. Sem margem de manobra e temendo as
consequências de entregar a coroa ao desmando de Junot, D. João decide
empreender a primeira e única transladação de uma corte imperial para
uma colónia na história da humanidade.
O relato da fuga, que se dá já com o exército francês
às portas de Lisboa, é entretido, colorido e muito de acordo com a
recente e aclamada obra do australiano Patrick Wilcken (4). Apesar da
confusão do embarque de 15.000 pessoas num curto hiato de algumas horas;
apesar do caos e da precipitação; apesar do desespero de quem ficava,
apesar do pânico de quem partia; é bem registado nestas páginas que não
houve violência nem se registaram baixas, facto que raramente é
mencionado – e valorizado – quando este assunto é discutido. E, apesar
da impreparação logística, das 2 tormentas que assaltaram a frota, da
falta de higiene, de água e de comida, a viagem decorreu também sem
óbitos ou naufrágios, fenómeno espantoso, dado o contexto da odisseia.
Ironia das ironias, o exército de Junot chega a Lisboa num estado
lastimável, triunfante mas famélico e com pouco mais de 6000 homens,
metade das tropas que tinham partido de Espanha.
Não é explícito no texto, mas percebe-se bem, neste
capítulo, porque é que os ingleses tanto pressionaram a coroa portuguesa
para desobedecer aos ultimatos de Napoleão. Com a ocupação francesa da
metrópole, dá-se o fecho do mercado exportador português e francês. Em
consequência, os ingleses passam a exportar de tudo para o Brasil, mesmo
os artigos mais disparatados, incluindo patins de gelo (!). Dentro da
mesma lógica, a crescente hostilidade da coroa britânica ao comércio de
escravos no Atlântico sempre aconteceu mais por razões económicas e
imperialistas do que por convicção humanista. Enquanto Jorge III
governou a América, a mão-de-obra escrava utilizada nos campos do
algodão não lhe incomodava a sensibilidade.
Quando D. João e a sua corte chegam ao Brasil, são recebidos por uma colónia onde “pipocam”
demonstrações de apoio à coroa e de júbilo pela escolha do Brasil como
destino da fuga. A corte instala-se no Rio de Janeiro e, mais uma vez, o
relato destes anos é rico em textura e pormenor. Entre a sumptuosidade
da realeza e a brutalidade exótica da colónia tropical, há um universo
prolixo de contrastes. O Rio é, nas palavras de um viajante inglês “uma das mais sujas associações de seres humanos sob o céu” e o Brasil é “a terra das bofetadas“, única forma eficaz de contrariar a voracidade dos mosquitos.
Finalmente, a independência.
Os anos de exílio da corte no Brasil vão passando e a
continuada instabilidade geo-política na Europa leva D. João a
permanecer na colónia e a elevá-la a reino e sede do império, 7 anos
depois de ter chegado. Com a queda de Napoleão e já coroado Rei depois
da morte de sua mãe, D. João decide, em 1821, voltar à metrópole,
deixando o filho primogénito, D. Pedro, como regente do reino do Brasil.
Mas logo no ano seguinte, D. Pedro solta o famoso Grito do Ipiranga,
lenda que as autoras respeitam como se de um facto histórico se
tratasse, e que se deveu substancialmente às políticas quezilentas e
irrealistas das cortes em Portugal, bem como ao facto mais prosaico de
D. Pedro ter sido entretanto deserdado da coroa portuguesa em benefício
do seu irmão mais novo, Miguel. Seja como for, em 1822 o Brasil ganha a
sua independência.
Todo o processo foi de certa forma inédito: decorreu
do transporte da corte para o Brasil e, depois, da instauração de uma
monarquia independente pelo herdeiro da coroa imperial, quando na
América do Sul a tradição independentista era profundamente republicana.
A monarquia, que valeu no Brasil primordial como um polarizador
identitário fortíssimo, constituiu uma forma bem-sucedida de manter a
nação unida, ao contrário do que aconteceu com os territórios de língua
castelhana, que se fragmentaram nas diversas repúblicas bolivarianas que
conhecemos hoje. Mesmo assim, tratava-se de um regime profundamente
anacrónico e contraditório: liberal e esclavagista, constitucional com
tiques absolutistas, o Brasil de D. Pedro não é propriamente um estado
do iluminismo. E, apesar da imagem literária do príncipe rebelde, o
regime não respirava o oxigénio romântico da altura. Os acontecimentos
da primeira Constituinte de 1823, que o Imperador mandou dissolver
com argumentos de baioneta e a carta constitucional, draconiana, imposta
por D. Pedro em 1824, pesam excessivamente na balança para podermos
fazer outra análise.
Mas, algo estranhamente, sem concluir sequer 10 anos
de reinado e abandonando os seus três filhos legítimos (levou consigo
apenas a filha bastarda), D. Pedro abdica e parte para Portugal,
deixando o país para mais de dez anos de regências. Esta desistência
nunca chega a ser bem explicada, na verdade. Podemos no entanto
equacionar que o imperador não estaria à espera das contrariedades
políticas que decorrem dos estados constitucionais e das complexidades
regionais de um reino imenso, multi-étnico e fragmentado. Conta também
para este totobola a oportunidade de recuperar a coroa metropolitana.
Ironicamente, dado o seu registo de governante conservador, D. Pedro
junta-se às hostes liberais, contra o seu irmão, na guerra civil que
assola Portugal.
Com a retirada de D. Pedro, recomeçam os
levantamentos a sério: a Cabanada de 1832 – reaccionária e restauradora,
com 1072 presos e 2300 mortos; o Levantamento do Quilombo de Uribo, o
Levantamento dos Malés na Bahia, interpretados exclusivamente por
escravos muçulmanos, em 1835; a Sabinada de 1837, outra vez na Bahia; a
Revolução Farroupilha ou Guerra dos Farrapos iniciada em 1835 mas que
trouxe dez anos de guerra no Rio Grande do Sul; A Balaiada no Maranhão –
com 12.000 mortos no ano de 1838; e, como se não bastasse, à convulsão
generalizada somaram-se as guerras fronteiriças com o Uruguai e com a
Argentina.
Graças à vitalidade própria das nações do novo mundo,
e também à precocidade de D. Pedro II, o Brasil soube porém prosperar. O
fim das regências trouxe a paz militar e social. O reinado voltava a
circular uno à volta de um imperador moderno, finalmente romântico,
apreciador das artes e das ciências, sensível e moderado. Pai e filho,
os imperadores iniciáticos da nação sempre se preocuparam em encontrar
um difícil elo de fusão cultural e estética entre as suas grandiosas
origens dinásticas (estes dois Bragança eram também Bourbons e
Habsburgos) e as idiossincrasias do império tropical. O filho foi melhor
sucedido do que o pai, recorrendo ao imaginário da arte nativista e
absorvendo-o como símbolo da coroa.
O ciclo de paz e prosperidade terminou com a Guerra
do Paraguai. A vitória, muito pesada em mortos, assinala o apogeu e
início do declínio da breve monarquia brasileira. Para além das
rebeliões internas e das escaramuças fronteiriças, o Brasil não tinha
uma história militar bem sucedida e a guerra com o Paraguai, apesar de
ser travada contra uma força muito mais pequena e frágil, durou cinco
dolorosos anos e custou cinco mil mortos e 20 mil feridos, dando lastro e
margem de manobra aos movimentos abolicionistas e republicanos. Num
ápice, o imperador passa a “emperrador”. Dado o seu carácter indeciso e a
proverbial tendência para a inação, D. Pedro II assina a abolição da
escravatura apenas em 1888, 66 anos depois da independência e 56 depois
de ser coroado. Era tarde demais. No ano seguinte, uma operação militar
relativamente discreta e sem apoio popular, faz cair a monarquia. D.
Pedro II estava completamente alheado do processo revolucionário em
curso e era de tal forma desrespeitado pelas elites militares que foi
informado da sua destituição por uma comitiva de oficiais subalternos.
Até que enfim, a República.
A república manteve o carácter oligárquico das
eleições que a carta constitucional de D. Pedro II tinha estabelecido. E
criou uma elite militar que iria marcar a traço vermelho o futuro da
nação e que começou cedo a mostrar o seu temperamento difícil. Em 1891, a
Revolta da Armada faz cair Deodoro da Fonseca, o marechal que,
entretanto, tinha mandado fechar o Congresso. Em 1893, nova revolta na
marinha que visava destituir o marechal Floriano Peixoto,
vice-presidente de Deodoro, que aproveitou a queda deste para usurpar o
poder. Entrementes, eclode uma intentona federalista no sul do país, que
dura dois anos. Finalmente, em 1894, cinco anos depois da instauração
do regime, dão-se as eleições para o primeiro governo civil. Porém, no
Brasil profundo, há forças reaccionárias em ascensão. O coronelismo, uma
oligarquia atávica e violenta de latifundiários militarizados e
plenipotenciários vai reduzir a margem de manobra da República e criar
uma mão cheia de inimitáveis vilões para as futuras produções da Globo.
Esta é a época da imigração. Com a abolição da
escravatura, a mão de obra é bem vinda e necessária. Entre 1904 e 1930
chegam 79.000 imigrantes ao Brasil – um terço eram portugueses, mas há
italianos, franceses, alemães e até japoneses. Na maior parte dos casos,
o sonho de uma vida melhor acabava num destino de servidão. Esta é,
também, a era da borracha, que foi breve mas suficiente para aburguesar o
estado de Manaus em particular e o Norte em geral. Mesmo assim e apesar
de uma visível tendência para a urbanização e a modernização
infraestrutural, a sociedade brasileira mantém-se essencialmente rural. E
teimosamente instável: os primeiros 20 anos do século XX mostram de
novo o país tumultuoso e convulso. Em 1904, a Revolta do Rio nasce pelo
descontentamento popular em relação às medidas que visavam erradicar as
doenças endémicas. O país é um “imenso hospital”. As pessoas morrem aos
magotes, vítimas de cólera, febre amarela, varíola, peste bubónica,
doença das chagas, paludismo e uma quantidade inumerável de infecções do
tracto digestivo.
De 1910 a 1920, surge um novo ciclo de sobressaltos
revolucionários. A Revolta da Chibata, levantamento de marinheiros
(ainda e sempre a marinha!) contra a aplicação de castigos físicos, a
Revolta da Escola Militar da Praia Vermelha, a Revolta dos Sargentos e a
Primavera de Sangue, são movimentos militares. Mas a estes junta-se a
proverbial rebeldia civil, com os levantamentos do Contestado, do
Jaazeiro, do Caldeirão, do Pau-de-Colher e dos Canudos.
O levantamento de Canudos, talvez o mais expressivo
desta época, tem origem numa comunidade com o mesmo nome, que ensaiou
uma modesta utopia baseada na pequena propriedade rural. Os vários
exércitos enviados pela república foram sucessivamente derrotados até
que a última excursão militar, armada até aos dentes, prometeu poupar as
vidas dos rendidos, de forma a evitar mais baixas. A promessa foi, no
entanto, ignorada e a maior parte da população foi fuzilada. Os poucos
revoltosos que sobreviveram à chacina foram viver, em condições
miseráveis, para os subúrbios do Rio de Janeiro, dando início à
tipologia da favela, uma planta muito comum na região de Canudos.
Para ajudar à festa, a imigração, principalmente a
imigração italiana, trouxe o anarco-sindicalismo e a consequente
organização política dos trabalhadores, pelo que estes primeiros anos da
república foram marcados por um surto recordista de greves operárias.
Entre 1900 e 1920 decorreram cerca de 400 (!).
No que diz respeito aos direitos civis, o novo regime
não trouxe melhorias por aí além. Os negros libertos e seus
descendentes lutavam com enormes dificuldades para aceder ao mercado de
trabalho; os índios, que entretanto tinham perdido o estatuto simbólico
que a monarquia utilizara para se legitimar, eram agora perseguidos ou
ignorados. Por outro lado, a lei eleitoral permanecia extremamente
restritiva: numa república de coronéis, votavam em 1930, 5,6% dos
cidadãos.
A República segundo Getúlio.
A Segunda República resulta de uma parafernália de
conspirações, assassinatos, rebeliões, disputas regionais,
fraudes eleitorais e inconformismo com os respectivos resultados. O
regime decaia para o caos. A revolução de 1930 é organizada e executada
com precisão militar, aniquilando a República Velha e colocando Getúlio
Vargas no poder. Getúlio fundou uma ditadura de inspiração trabalhista,
que durou 15 anos. Reformou a administração pública e deu direitos e
garantias aos trabalhadores, proibindo em simultâneo os movimentos
operários e os partidos comunistas. Quando em 1932 o estado paulista
ateia a fogueira do separatismo e pega nas armas (“Por S. Paulo com o Brasil, se for possível; por S. Paulo e contra o Brasil, se for preciso.”), Getúlio Vargas conta com o apoio popular e dos militares para ganhar a guerra.
Em 1933 a lei eleitoral concede pela primeira vez o
voto universal e as eleições resultam numa constituição tendencialmente
inclusiva, que obrigava ao equilíbrio de poderes. Porém, as múltiplas e
impenitentes insurreições militares de inspiração marxista nos anos 30
ofereceram a Getúlio a desculpa que precisava para instaurar o estado de
sitio e a suspensão dos direitos constitucionais, eternizando-se no
poder. Através de uma golpada sem tiros inaugurou em 1937 o Estado Novo –
um regime repressivo, que recorria à tortura e, claro, à censura.
A institucionalização do samba e do carnaval, e a
curiosa e irónica elevação do mestiço a herói nacional, foram
instrumentos da propaganda nacionalista, num modelo de Estado Novo que,
seguindo alguns dos parâmetros do fascismo europeu, apresentava
fundamentos trabalhistas e corporativos muito particulares.
A participação do Brasil na 2ª Guerra Mundial, ao
lado dos aliados, teve como moeda de troca o investimento americano no
tecido industrial do país, fenómeno que veio marcar sua a história
económica durante décadas.
Pressionado por variadíssimos sectores da sociedade,
Getúlio Vargas vê-se obrigado a marcar eleições e 15 anos depois de
chegar ao poder, em 1946, concede o acto eleitoral que trouxe de novo a
democracia e uma constituição que durou 20 anos. Ainda assim, o ditador
regressa nas eleições de 50 à luta política, graças a um habilidoso
negócio de alianças em todo o país. A este propósito, há que dizer que a
densidade labiríntica da política do século XX brasileiro torna a
evolução dos acontecimentos bem difícil de acompanhar, dada a
complexidade de interesses e partidos instalados nas diversas regiões e
estados da federação.
Uma vez eleito, Getúlio seguiu uma política de
autonomia energética criando a Petrobras e inaugurando os fundamentos da
futura Eletrobras. A estratégia de relançamento industrial de base –
com investimentos estatais na siderurgia e na indústria automóvel –
estavam de acordo com uma economia nacionalista em rota de colisão com o
capital internacional. Acto contínuo, os grandes conglomerados
industriais norte-americanos desinvestem no Brasil e as instituições
credoras pressionam o governo, na firme intenção de liquidar dentro dos
prazos o crédito que tinham fornecido ao regime. A queda do governo de
Getúlio começa precisamente com a reacção do capitalismo internacional. E
acaba com o triunfo dos seus velhos inimigos: A UDN de Carlos Lacerda,
as forças armadas e a imprensa.
Um atentado falhado, que pretendia eliminar Lacerda,
coloca a força aérea na surpreendente e muito pouco ortodoxa posição de
polícia plenipotenciária. A investigação conclui, acertadamente, que por
trás do atentado estava o chefe dos serviços de segurança de Getúlio.
E, numa busca efectuada ao palácio presidencial, obtém e divulga
documentos que põem a nu a corrupção que consumia o regime. Incapaz de
aceitar o seu fim político, Getúlio suicida-se e a reacção popular de
pesar e revolta travou o ímpeto golpista dos militares.
Mas logo nas eleições de 1955, que elegeram
Kubitschek, registam-se levantamentos da tropa, dos quais o mais
expressivo é o de Jacarépagua, em 1956; e tentativas de golpe de estado,
destacando-se a que resultou de uma conspiração entre a UDN e os
militares.
Da Bossa Nova à ditadura militar.
Apesar de tudo, o governo de Juscelino Kubitschek ia
sobrevivendo às convulsões, tendo-se afirmado com uma agenda de
crescimento económico acelerado, os famosos “50 anos em 5“, que
apostava em infra-estruturas industriais e rodoviárias e na economia de
consumo. Pragmático e liberal, Kubitschek coloca o nacionalismo na
gaveta e permite a internacionalização da economia e a reentrada de
capital estrangeiro. Ambicioso, manda construir a cidade de Brasília no
planalto central, uma área do território que, na altura, consistia numa
espécie de nenhures.
Estes anos de democracia são os anos da Bossa Nova e
do Neo-Realismo, fenómenos culturais que iriam marcar o cenário da
música, do cinema e da literatura por décadas, no Brasil. Entretanto, no
mundo rural, o tempo cristalizou. Reina o sistema de propriedade
latifundiária de sempre, e a oligarquia dos coronéis sobrevive às
décadas. Por outro lado, a inflação e o aumento do deficit público volta
a castigar a economia brasileira.
Jânio Quadros, o presidente que se segue, trai a UDN,
que o apoiou nas eleições de 1961, com uma política externa de
aproximação a Cuba e ao bloco soviético. Dá-se mal com o Congresso e com
o modus operandi da democracia constitucional e acaba por entregar o
país a João Goulart, o seu vice-presidente, seis meses depois de ser
eleito. Goulart assume a presidência, mas não sem que antes o país fique
de novo à beira de uma guerra civil. Porém, a inflação, que rondava os
80%, e a imperícia de Goulart na gestão dos levantamentos militares e
das invectivas da oposição deitam tudo a perder: o golpe militar de 64
decorreu sem grandes dificuldades e instalou uma junta totalitária que
durou durante 21 anos.
A junta militar retira os comunistas do congresso,
alia-se aos interesses industriais e coloca os generais no poder. A
política de liberalização e internacionalização da economia e a redução
do papel do estado levou ao crescimento económico mas também e novamente
ao aumento desenfreado da inflação, que em 1985 iria atingir os 285%,
bem como ao agravamento do deficit externo.
A ditadura trouxe aquilo que as autoras designam como
“a burocracia da violência”, uma oligarquia militar que utilizava a
censura, a eliminação de direitos, a repressão, a tortura e o genocídio
como instrumentos de poder. E nos últimos anos do regime o país tinha
afinal os mesmos problemas de sempre: desigualdades sociais e económicas
gritantes, dívida externa incontrolável, inflação galopante.
De volta à democracia.
Enquanto a primeira fase da luta contra a junta
militar era interpretada por forças marxistas (na clandestinidade) e
católicas (à vista de toda a gente), a sociedade civil foi exigindo
progressivamente o regresso de eleições livres e da democracia. Esta
oposição à ditadura tinha no entanto características diferentes.
Recusava a luta armada e o apelo revolucionário, preferindo a
demonstração nas ruas e a denúncia nos meios de comunicação social.
Jornalistas, artistas, intelectuais, ídolos do desporto, estudantes e
até empresários empenharam-se no combate, enquanto os operários abalavam
o país com greves longas, que resultaram na sindicalização dos
movimentos laborais e no nascimento do Partido Trabalhista.
O último general da junta, João Figueiredo, em
desespero de causa, promulgou uma amnistia geral: militantes na
clandestinidade, presos políticos e activistas no exílio foram
perdoados. Esta lei, desgraçadamente, tornou também possível o
impensável: garantir a impunidade dos carrascos da ditadura, que ainda
hoje são inimputáveis.
A campanha pelas eleições directas de 84/85 teve
grande adesão popular, mas foi chumbada no Congresso. Finalmente, em
1985, através da realização de eleições indirectas, Tancredo Neves, o
candidato conservador, foi eleito, mas morreu antes de tomar posse. O
seu vice, José Sarney, sucedeu-lhe. A constituição da Nova República foi
aprovada em 88 e está em vigor até hoje.
Os historiadores seguem geralmente uma regra deveras
sensata: os 50 anos anteriores ao momento em que um trabalho é realizado
são poupados à análise. Infelizmente, Lilia M. Schwarcz e Heloisa M.
Starling não respeitam esta lei de ouro, prejudicando em muito a sua
obra. A forma como retratam as eleições que opuseram Collor de Melo a
Lula da Silva é tendenciosa e completamente escusada, mesmo considerando
o estilo biográfico a que recorreram na construção da narrativa. Todo o
texto que se segue à constituição de 88 é um exercício de opinião,
incompatível com a ciência da História.
Conclusão: paraíso tropical ou paraíso perdido?
A leitura de “Brasil: Uma Biografia” é, muitas
vezes, extenuante. Não por culpa das autoras, que se esforçam, com
grande sucesso, em construir uma narrativa vivaz e cativante, mas porque
o seu herói é um país conturbado e torturado. Um país turbulento,
volátil, rebelde, inquieto, múltiplo. Um pais de levantamentos, golpes
de estado, revoluções e guerras civis; um país dividido na sua grandeza
étnica e territorial, revoltado contra si próprio, vítima brutal e
recorrente das suas forças militares e para-militares.
Um dos problemas orgânicos da nação brasileira
decorre do acesso ao poder político por parte das forças armadas. Este
acesso foi institucionalizado na Primeira República, mas já era latente
no fim da monarquia. A presença das elites militares nas instituições
políticas criou um ciclo doentio e violento, que só foi quebrado nos
anos 80 do século XX. Até porque a tropa serviu, historicamente, muito
mais para resolver problemas internos do que externos. As guerras de
fronteira são, paradoxalmente para uma nação tão virulenta, escassas.
Mas as intervenções do exército, da marinha e da força aérea dentro dos
limites territoriais do país são extremamente frequentes, e
frequentemente sangrentas.
O
Brasil é também uma nação dividida entre os interesses dos
conglomerados económicos internacionais, um forte sentimento
nacionalista por parte das elites que governam e o permanente sentimento
de injustiça social das populações. A corrupção generalizada, as
sucessivas crises económicas, o peso esmagador da dívida pública e a
miséria que atinge largas faixas sociais nunca são fenómenos de
conjuntura. O país vive estruturalmente assolado por estes problemas de
fundo.
A conclusão do livro tem 10 páginas, numa obra de
516, como se as autoras tivessem medo das sua própria síntese, mas
começa logo com a desagradável citação de Oswald de Andrade e é,
basicamente, um deslocado e propagandístico manifesto em favor de Lula
da Silva. A corrupção que grassou no PT enquanto força de poder no
Brasil é mencionada, mas cuidadosamente contextualizada como parte do
fenómeno que é historicamente transversal no país. Quando até duas
prestigiadas historiadoras chegam a este nível de condescendência,
começamos a compreender porque é que o Brasil tem dificuldades em
resolver os problemas estruturais.
A incapacidade de fazer as pazes com as suas origens
também impede os brasileiros de sentirem a pátria de uma forma um pouco
mais saudável. Uma nação que deve a sua unidade e muito da sua
identidade à língua portuguesa e aos Braganças, que consolidaram um
território dividido e que o fizeram independente, devia ter uma atitude
mais conciliatória com Portugal. E, mais uma vez, se são até os
académicos os primeiros a desprezar a história e a cultura portuguesa,
que podemos esperar de todos os outros?
A este propósito, uma última nota. Aceitando como
válidas as recentes conclusões da História Contrafactual (5), que
dimensionam a disciplina numa perspectiva não determinista, seria talvez
pertinente fazermos esta pergunta: se a corte de D. João não tivesse
fugido do lamentável exército de Junot, que realidade seria hoje esta
realidade a que chamamos Brasil? Provavelmente, um conjunto de estados
independentes, e talvez nem todos de língua oficial portuguesa.
Mas não será o Brasil uma nação imensa, precisamente
porque causa das suas contradições, da sua dialéctica vivência
psico-social, dos seus triunfos e misérias? Tesouro vivo em diversidade
humana, mosaico de glórias libertárias e totalitarismos, padrão dos
descobrimentos em carro de carnaval, quinto império ao contrário, este é
o país da Utopia. Do experimentalismo de um estado novo trabalhista à
ditadura militar de vocação liberal, das laboratoriais comunidades
rurais e operárias às cidades de libertos, o que não falta na história
brasileira são manobras de engenharia social, mais ou menos ingénuas,
mais ou menos draconianas, na senda de uma ideia de paraíso. O problema,
porém, está naquilo que um argentino, Jorge Luís Borges, sintetizou
assim: “Não há outros paraísos senão os paraísos perdidos.”
Distopia tropical e sonho de uma noite de verão, o
paraíso perdido será talvez o tal super-herói desta biografia. Mas com
promessas de ser reencontrado.
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(1) Walker and Bailey; “Body Counts In Lowland South American Violence” (ScienceDirect, 2013);
(2) Jared Diamond; “Armas Germes e Aço – Os Destinos das Sociedades Humanas” (Temas e Debates, 2015);
(3) Patrick Wilcken; “Império à Deriva – A Corte Portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1921 (Livraria Civilização Editora);
(4) Charles R. Boxer; “O Império Marítimo Português 1415-1825” (Edições 70, 2011);
(5) Niall Ferguson (Coord.); “História Virtual” (Tinta da China, 2006).