Vivo num mundo ao contrário. Durante décadas, fui aliviando esta contrariedade cósmica com vários estratagemas, um entre os quais, o de fazer amigos que atenuassem a assimetria entre a minha identidade e a sociedade em que vivo. Constato agora a falência dessa estratégia. Os amigos que tenho hoje só contribuem para este isolacionismo antípoda em que vivo.
Os amigos que tenho nesta precisa etapa da existência, telefonam-me entusiasmados porque leram um livro que acusa o Álvaro de Campos de erros gramaticais enquanto consideram que o Lobo Antunes é um génio. Os amigos que tenho hoje, mesmo os católicos, tecem elogios inauditos a este papa, o único no meu tempo de vida que realmente pretendeu dessacralizar a Igreja. Os amigos que tenho hoje, mesmo os ateus, tecem elogios inauditos a este papa, o único no meu tempo de vida que realmente teve a ambição de os evangelizar a todos. Os amigos que tenho hoje, mesmo os de direita, acham que o PSD deve virar à esquerda. Como se este não fosse já um país excessivamente virado para esse lado. Como se o PSD alguma vez na sua triste história tivesse sido um partido de direita.
Os amigos que tenho agora são amigos da geringonça e acham que o Obama é o máximo e que o Reagan era o diabo em pessoa e que é boa ideia namorar com aiatolas e caudilhos socialistas.
Os amigos que tenho agora acham que Israel devia ser uma província da Palestina. Os amigos que tenho agora acham que a maior aventura possível é a de ir de férias para o Cambodja. E elegem Slavoj Zizek como um ensaísta de referência e conseguem apreciar a Lady Gaga e ainda não perceberam que a civilização que lhes alimenta luxuosamente a barriga de opiniões igualitárias e refeições lautas e automóveis com duzentos cavalos e telemóveis de mil euros e apartamentos de classe média-alta e empregos simpáticos e filhos mal criados e cães mimados e hobbys e ginásios e manias e psicanalistas; essa civilização que lhes permite os valores profundamente anti-civilizacionais com que manifestam o seu tédio de gordos arrependidos, está no fim.
Os amigos que tenho agora estão tão longe de mim como qualquer estranho que tenha votado na Marisa para as presidenciais. Já não servem à minha desesperada tentativa de fingir que o mundo gira na sua órbita correcta.