Ao correr das lembranças
Lembrança minha do jardim de casa:
vida benigna das plantas,
vida cortês e misteriosa
e lisonjeada pelos homens.
A mais alta palmeira daquele céu
e estância de pardais;
videira firmamental de uva negra,
dias do verão dormiam à tua sombra.
Moinho colorido:
remota roda a laborar no vento,
honra de nossa casa, porque nas outras
corria rio abaixo o sino do aguadeiro.
Cave circular da base,
tornava vertiginoso o jardim,
fazia medo ver por uma frincha
o teu cárcere de água subtil.
Jardim, frente à cancela se cumpriram
os agrestes carreiros
e aturdiu-nos o carnaval berrante
de insolentes fanfarras.
O armazém, padrinho do malévolo,
dominava a esquina;
mas tinhas canaviais p'ra fazer lanças
e pardais para a oração.
O sonho de tuas árvores e o meu
ainda se confundem na noite
e a extinção das gralhas
deixou um medo antigo no meu sangue.
As tuas poucas varas de profundidade
tornaram-se a nossa geografia;
um alto seria "a montanha de terra"
e uma temeridade o seu declive.
Jardim, encurtarei a oração
para continuar sempre a lembrar-me:
a vontade ou o acaso de dar sombra
foram as tuas árvores.
Jorge Luís Borges . Caderno de San Martín . 1929