domingo, agosto 19, 2018

Raça dos nomes.

Quando era adolescente já existiam maricas. Chamávamos-lhes maricas. Só depois de os maricas se tornarem paneleiros, com manifestações na avenida da Liberdade, é que lhes começámos a chamar paneleiros. As fufas eram fufas ou eram lésbicas e assim foi durante décadas. Os travestis, foram travestis durante imenso tempo. Não interessava realmente ao bem comum, à razão substantiva e à proficiência da gramática se o travesti tinha pila ou não tinha pila (ninguém tem nada a ver com isso, na verdade). Era um tipo que, no mínimo, já tinha tido uma pila e que gostava de se vestir de mulher. E até existiam umas ruas em Lisboa onde homens vestidos de mulheres entravam dentro de carros de homens vestidos de homens e isso também parecia mais ou menos normal porque nessa era paleolítica já sabíamos que há gente para tudo, até para o carnaval de Torres Vedras.

Nesses distantes anos do Século XX, chamávamos velhos aos velhos e bêbados aos bêbados e drogados aos drogados e atrasados mentais aos atrasados mentais e paralíticos aos paralíticos e isso tornava a vida mais fácil para os que eram idosos, alcóolicos, tetraplégicos ou retardados e para os que não tinham esses problemas. Os que não tinham esses problemas, bem entendido, tinham outros, porque a espécie humana é mesmo assim: problemática.

De qualquer forma, esta maneira explícita de chamar os bois pelos seus naturais substantivos próprios reduzia bastante a latitude necessária à geração de falsas expectativas: um atrasado mental sabia à partida que não ia ser engenheiro aeronáutico, um bêbado aprendia a conviver bem com a improbabilidade de uma carreira como neurocirurgião e um paralítico não sonhava com uma posição activa no regimento dos bombeiros voluntários lá da terra. Além disso, quando os drogados eram apenas drogados, não dependiam de ninguém. Conseguiam drogar-se com total independência. Quando passaram a tóxico-dependentes começámos a perceber que estavam reféns de montes de pessoas e de instituições de quem deveras necessitavam para se drogarem convenientemente, o que não faz sentido nenhum: se uma pessoa até ali tinha conseguido drogar-se sem chatear ninguém, para quê complicar?

Creio que hoje temos imensos atrasados mentais em lugares de poder na sociedade portuguesa precisamente porque deixámos de os tratar por atrasados mentais. Começámos a utilizar linguagem técnica e indecifrável até para as pessoas sãs, quanto mais para os doentes do cérebro. Se chamamos a um atrasado mental “pessoa com dificuldades cognitivas associadas a patologias regressivas de ordem psicossomática”, como é que o atrasado mental consegue perceber quem é? Pode até acontecer que, dada a extensa, sonora e pomposa nomenclatura, se julgue amado pelos deuses ao ponto de poder vir a ser um advogado de sucesso, um deputado eloquente ou um carismático primeiro-ministro.

A questão da raça também estava mais ou menos definida. Se um gajo era preto, correspondíamos apropriadamente com o substantivo adequado: este gajo é preto. Se era branco, a mesma coisa. Se estava entre o branco e o preto, para não lhe chamarmos cinzento, chamavamos-lhe mulato, que é uma bela palavra parida pela Língua Portuguesa. Já a malta do Índico era monhé ou patrícia e ninguém ficava com problemas de estômago por causa disso. É certo que as coisas começaram a ficar complicadas quando, algures nos anos 80, caiu em moda dizer que os pretos eram “de cor”.
Esta denominação tinha um problema sério: quando dizemos que alguém é de cor, ou essa pessoa está presente, manifestando a sua evidência cromática, ou é necessário estabelecer previamente o contexto sócio-linguístico. Caso contrário, a pergunta de volta será inevitavelmente esta: mas essa pessoa de cor, de que cor é? E isto, gentil leitora, paciente leitor, é redundante o suficiente para corromper o bom fluxo do complexo processo da comunicação humana.

Estranhamente, não aconteceu o mesmo com os brancos. Não começámos a falar de pessoas brancas como se fossem pessoas de nenhuma cor, ou ausentes de cor, ou descoloridas. Os brancos continuaram a ser brancos. Ainda hoje são brancos, embora agora sejam brancos supremacistas, brancos colonialistas, brancos opressores, brancos patriarcais ou brancos sexistas. E parece que já não há mulheres brancas, muito simplesmente porque as mulheres não podem ser sexistas, nem opressoras e muito menos patriarcais. São, sim, vítimas do homem branco e, como vítimas, não podem ser brancas. Na mesma ordem de razão, começam também a rarear os homens negros, porque os homens negros são vítimas do homem branco e, como vítimas, não podem ser homens.

Nessa era da minha puberdade, o sexo não tinha consciência de classe e a raça não tinha preocupações de género. E esta ingenuidade taxonómica funcionava razoavelmente bem. As mulheres percebiam perfeitamente que eram mulheres, os homens que eram homens e os outros que eram diferentes. As crianças não tinham os confusos problemas fenomenológicos dos nossos tempos: chamavam mãe à mãe e pai ao pai e não esperavam ter dois pais ou duas mães ou dois pais e uma mãe ou uma mãe e dois pais ou o diabo que os carregue.

O problema contemporâneo de podermos ter 65 substantivos para distribuir fundamentalmente entre dois sexos biológicos, ou de termos 155 termos técnicos para qualificar alguém que é pura e simplesmente atrasado mental, não é tanto político como é existencial. Porque se dividimos as pessoas numa miríade de categorias, o que acontece é que acabamos por não identificar ninguém. Um tipo que é branco, drogado e burro, já não é branco, drogado e burro: é um cidadão alegadamente do sexo masculino, caucasiano, heterossexual ortodoxo, opressor de povos e tóxico-dependente com dificuldades cognitivas de largo espectro. A rapariga que é preta, paralítica e inteligente já não é preta, paralítica e inteligente: é uma cidadã de origem africana, vítima ancestral do colonialismo do homem branco, que apresenta desafios motores e traumas psíquicos decorrentes da exposição dos seus ascendentes ao esclavagismo, traumas esses que lhe garantem capacidades intelectuais acima da média e altos índices de inteligência emocional.

Convenhamos: esta nomenclatura não é nada efectiva nem é nada ética. Tem um problema funcional, porque a hiper-categorização conduz à igualização, roubando o individual ao indivíduo, a diversidade ao diverso e a humanidade ao humano. Tem um problema ético, porque toda a ética é uma estética e imaginem, por exemplo, a dificuldade que terá o poeta da segunda metade do século XXI quando quiser escrever uns cândidos versos de amor dedicados a um ser cuja identidade sexual é de "Terceiro Género". Ou de género "Não Binário".

O esforço concertado no sentido de igualizar géneros e raças e religiões e civilizações e histórias e filosofias e classes sociais, arrasando tudo ao zero absoluto, é, para além de irritante, completamente inútil: não é por inventarmos géneros até ao infinito que as crianças vão deixar de nascer como sempre nasceram: umas com pilinha, outras com pi-pi. Não é por forçar a homogenia que as pessoas vão ser mais ou menos pálidas, mais ou menos coloridas, mais ou menos vis, mais ou menos virtuosas.

Que raça de mania.