Adão e Eva são produtos de directo fabrico divino e, assim, não biológico. No sentido técnico, que não é dispiciendo, não são mamíferos. São uma espécie de autómatos sem consciência de si, até que cedem à tentação de provar dos frutos da Árvore do Conhecimento, e por esse atrevimento serão condenados a uma árdua existência. A raça humana na verdade inicia-se apenas com a prole deste infeliz casal e sendo que o primogénito é Caim, assassino rematado do seu irmão Abel, ficamos avisados acerca da orgia sanguinolenta que vai manchar a narrativa daqui para a frente. Ficamos esclarecidos sobre o potencial de vilania que existe em cada um de nós. Mas também sobre os limites da justiça: Deus mostra-se severo para com Caim depois de saber do seu bárbaro cometimento. Mas, naquele que é o primeiro acto de corrupção judicial da história da humanidade, ameaça com violências septuplicadas qualquer tentativa de aplicação de castigo proporcional sobre o seu infame neto. E é por isso que a razão divina não deve nunca ser uma fonte do Direito.
O Livro de Job é um dos mais discutidos e surpreendentes textos do Antigo Testamento. Transformado em mercadoria de casino por uma estranha aposta entre Deus e o Diabo e enclausurado numa tenebrosa galeria de horrores, Job, o mais fiel dos crentes, o mais justo dos homens, o mais próspero e amado senhor do oriente, vê num só dia o seu património aniquilado, o seu gado sacrificado, os seus servos exterminados e toda a sua prole extinta. Leproso, abandonado pela mulher, vilipendiado pelos irmãos e traído pelos amigos, o desgraçado arrasta-se em agonia por uma desventura que, de tão cruel e imerecida, pertence ao domínio do surreal. Job mortifica-se e pergunta-se pelos males que possa ter cometido para ser sujeito a semelhante conjunto de cataclismos. Mas é a sua resiliência, a sua resignação a um destino cujas leis não domina, que impressionam e que acabam por salvá-lo. No fim da história, Deus ganha a aposta que fez na fidelidade de Job e compensa-o finalmente, com redobrado património, dez filhos e a redenção social. O que foi entretanto sacrificado, em vidas e bens, passa a nota de rodapé e o herói nunca chega a perceber porque raio foi atingido por semelhante vendaval ontológico. Deve permanecer insondável o mistério do sofrimento.