Para não estragar nada a quem ainda não viu esta série, mostro apenas o impecável opening title da segunda temporada de "The Leftovers", uma produção da HBO que está a mexer imenso com o esqueleto da minha sensibilidade.
A série foi produzida entre 2015 e 2017, mas só agora decidi investir nisto e foi em boa hora, porque se trata de um produto televisivo que é capaz, como poucos, de terra-transformar radicalmente a geografia emocional do espectador.
The Leftovers desenrola-se sob um pressuposto inicial que parece de modesta intensidade dramática: a narrativa começa 4 anos depois de um evento sobrenatural ter feito desaparecer 2% da população humana global. Só que a forma como Damon Lindelof e Tom Perrotta trabalham sobre este pressuposto é densa e tentacular e transcende qualquer tipo de cliché apocalíptico. As consequências do desaparecimento de 2 pessoas em 100 não se revelam tanto no sofrimento directo daqueles que perderam os seus familiares e amigos, mas sim na angústia existencial que se abate sobre toda a sociedade. Na dificuldade de entendimento físico e metafísico do fenómeno, que leva a um surto de esquizofrenia individual e colectiva e religiosa que é verdadeiramente aterrador.
Os personagens desta série são sujeitos a um percurso desesperante de caos e inquietude, de contrariedades e arrependimentos, de solidão e niilismo, de tal forma que são incapazes de se apresentar como heróis ou vilões: são apenas gente de quem temos pena, ou por quem nutrimos simpatia. São pessoas normais, frágeis e complexas, apanhadas numa tempestade desenhada por Schopenhauer.
Estou agora a terminar a segunda temporada e desconfio que, como já fez em "Lost", Lindelof não vai explicar todas as anomalias ontológicas a que submete a interpretação do audiente, mas, ainda assim, não tenho motivos para descrer que a terceira temporada não consolide a genialidade toda do projecto.
Da irreverência vanguardista da banda sonora ao classicismo temático do guião, que se inspira na tragédia grega tanto como nas escrituras judaico-cristãs, este é, sem dúvida alguma, um contributo sério para a redefinição do que deve ser a televisão no século XXI. E, por uma vez, trata-se de um produto não politizado. O que, nos tempos que correm, não é dizer pouco. Cinco estrelas.