quinta-feira, junho 06, 2019
Chernobil ou a natureza apocalíptica dos regimes totalitários.
Crise dos Mísseis de Cuba à parte, o momento em que a espécie humana esteve mais perto do apocalipse foi a 26 de Abril de 1986, quando os procedimentos relativos a um teste de segurança que simulava um corte na fonte eléctrica levou à explosão do reactor nº 4 da Central Nuclear de Chernobil, na República Soviética da Ucrânia.
A mini-série de cinco episódios que a HBO produziu recentemente sobre este acidente catastrófico - e cuja emissão foi concluída na segunda-feira passada - é uma obra-prima do produto televisivo.
Criada, redigida e produzida pelo surpreendende Craig Mazin (que até aqui era conhecido por "A Ressaca", "Os Anjos de Charlie" e outros lamentáveis subprodutos do género), e magnificamente interpretada por Jared Harris (o contabilista suicida de Mad Man), Stellan Skarsgård e Emily Watson, a série expõe, com admirável sobriedade narrativa e superior mestria cinemática, a cadeia de erros humanos e técnicos que levaram à explosão do reactor, bem como as mentiras e incompetências do estado soviético que provocaram directa e indirectamente a morte de mais de 90.000 pessoas.
Apesar de não se tratar de todo de um objecto propagandístico, a reconstituição histórica dos ambientes materiais e imateriais da era dos sovietes e dos seus autismos vários e das suas tirânicas volições e dos seus tiques atávicos e da tendência invariável para a supressão da verdade factual, fazem de Chernobyl um documento que levanta o véu sobre as fragilidades dos regimes totalitários e que demonstra com eloquência como a realidade supera largamente as ambições da ficção.
A suprema ironia desta história é que foi precisamente o poder esmagador dos burocratas do Politburo, aquela espécie de poder niilista que envia homens para a morte certa sem a sujeição a um qualquer e humanista argumento contraditório, que permitiu levar a cabo as tardias operações de evacuação da área urbana de Pripyat e de contenção do acidente. Voluntários ou conscritos, centenas de homens, entre técnicos da central nuclear, bombeiros, mineiros e soldados sacrificaram as suas vidas para evitar que Chernobil se transformasse numa catástrofe global. A mini-série da HBO honra-os. E funciona como uma espécie de aviso para futuras aventuras de inspiração fascista: um aparelho regimental fundado na mentira pode resultar a curto prazo. Mas acabará sempre em desastre.
Mikhail Gorbatchev afirmou um dia que Chernobil foi o primeiro motor da queda do império soviético. Considerando a dimensão do desastre e a exposição internacional das misérias tecnológicas, operacionais e filosóficas do aparelho comunista, o último secretário geral do Politburo é capaz de ter alguma razão.
Melhor série de 2019. De longe.