terça-feira, dezembro 17, 2019
Do mito da Santa Inquisição como organização genocida: contributos críticos e comparativos para o restabelecimento da verdade histórica.
O Baptismo do Fogo . Avvakum . 1682
"Não podemos pedir perdão por actos que não foram cometidos."
Cardeal Georges Corttier
Uma das rábulas sobre a história da Igreja Católica que sempre me fizeram espécie, que sempre me pareceram mais propagandísticos do que factuais, é a da Santa Inquisição. A opinião pública contemporânea tem a mesma ideia da Inquisição que tem dos campos de extermínio nazis ou coisa que o valha. Ora, seria talvez conveniente voltarmos aos dados estatísticos e à informação de campo que de facto temos, para fazer uma ideia do terror inquisitorial mais baseada na realidade e menos inspirada pela propaganda anti-católica.
Em primeiro lugar: a queima de pessoas como castigo último é tudo menos uma prática recorrente do cristianismo em geral e da Igreja Católica em particular. A morte pelo fogo é uma prática tão antiga como as primeiras civilizações do próximo oriente e foi introduzida na Europa pelos romanos primeiro e pelos celtas depois. Antes da Igreja Católica queimar fosse quem fosse, já os ortodoxos russos o faziam com bastante regularidade e é muito provável, à luz das estatísticas mais recentes, que a religião protestante tenha queimado muito, mas muito mais bruxas do que a Católica queimou hereges (já lá iremos).
Logo de seguida há que equacionar que as inquisições espanhola, portuguesa e romana queimavam muita gente em modo effigiantur, ou seja, não queimando os impenitentes propriamente ditos, mas sim figuras em palha que os representavam. A Inquisição Portuguesa queimou um terço dos condenados à fogueira desta forma. É recorrente que estes números seja atirados para a estatística dos mortos, quando, obviamente lá não deviam estar.
A terceira alínea desta quadro céptico tem que ser esta: todas ou quase todas as projecções estatísticas sobre o número de pessoas condenadas a morrer na fogueira pela Inquisição são apenas isso: projecções. A maior parte dos registos oficiais da igreja perderam-se ou foram destruídos.
Depois, convém fazer uma separação clara entre aqueles que foram queimados na fogueira pela Inquisição e aqueles que lá foram parar conduzidos pelas mais que diversas turbas, milícias, polícias, assembleias e salas de tribunal que infestaram a vida social, política, religiosa, judiciária e militar nos séculos XVI a XIX. O facto torna-se ainda mais significativo quando falamos da queima de bruxas, fenómeno histérico-social que durou cerca de um milénio e que, na verdade, pouco teve a ver com a actividade inquisitorial da Igreja, até porque ocorreu, em 95% dos casos em países onde a Inquisição não tinha sede nem exercia a sua dúbia justiça. A partir do século XVI, os campeões deste género específico de churrasco foram os protestantes.
Esta catalogação correcta da natureza e da volição dos incendiários é raras vezes feita pelos historiadores e pelos romancistas e pelos jornalistas e pelos cineastas e pelos formadores da opinião contemporânea, mas a verdade é que a Igreja assou muito menos gente do que o improviso secular, os aparelhos burocráticos, a justiça real ou o radicalismo calvinista. Por exemplo, Henry Kamen estima que até 1530 foram condenadas à fogueira por todos os tribunais espanhóis, cerca de 2000 desgraçados. Porém, William Monter calcula que entre 1540 e 1740 a inquisição espanhola foi "apenas" responsável por 1240 queimados vivos. Ora, considerando que organização foi fundada pelos reis católicos apenas em 1478, percebemos que morreu mais gente na fogueira a mando dos tribunais da coroa do que dos tribunais da inquisição.
Por último, os números possíveis: a Inquisição Portuguesa, que cumpriu a sua horrível missão entre 1540 e 1794, condenou à fogueira, nos tribunais de Lisboa, Porto, Coimbra e Évora, 1175 pessoas (menos do que 5 pessoas por ano de actividade), segundo um estudo de Henry Charles Lea. A Inquisição Espanhola, acreditando no exaustivo trabalho de Gustav Henningsen, levou a tribunal 44,674 casos, que resultaram em 826 execuções pelo fogo (cerca de 3 pessoas por ano de actividade; 0,06% dos casos julgados).
Sobre a inquisição Romana e Francesa, bem como sobre as suas sucursais na colónias à volta do mundo, os números variam imenso e têm muito pouca sustentação factual, mas um recente estudo do Professor Agostino Borromeo, considerado fidedigno por uma significativa quantidade de historiadores contemporâneos, demonstra que os números têm sido grandemente exagerados e calcula que ao todo, nos países onde esteve presente e durante os 300 anos de carta verde, a Inquisição julgou125.000 casos, condenando à morte pela fogueira cerca de 1% dos julgados, pelo que ficamos com um número de referência: 1250 pessoas.
Ora, é precisamente aqui que a porca da história torce o seu interminável rabo elíptico. Se compararmos estes números com outros do mesmo género, dentro do mesmo período histórico, percebemos que a Inquisição não foi de todo protagonista no cenário contextual de chacinas e mortandade em que exercia a sua actividade. Dou uns poucos exemplos referentes apenas aos séculos XVI - XVIII, para ser consistente em termos cronológicos:
1517-1648 - Europa: A Reforma Protestante foi um dos movimentos mais mortíferos da história da humanidade. Só na Guerra dos 30 anos, consequência directa deste cisma cristão, a Alemanha perdeu 25 a 40% da sua população. Os números não são certos, mas estima-se que tenham morrido na Europa, por causas directas ou indirectas (guerra, massacres, fome e doenças) desta revolução religiosa direccionada contra a Igreja Católica, 8 milhões de pessoas.
1570 - Chipre: as forças otomanas, em guerra contra Veneza, chacinaram a totalidade dos cristãos sitiados no Chipre. Calcula-se que foram mortas entre 30 a 50.000 pessoas.
23, 24 de Agosto de 1572 - Paris: sob a égide de Catarina de Medicis, 5.000 a 30.000 huguenotes (protestantes franceses) foram chacinados na Noite de S. Bartolomeu.
1645 - Yangzhou, China: As tropas do Imperador Quing mataram cerca de 800.000 residentes desta cidade, por terem aderido à resistência contra a dinastia no poder.
1645-46 - Sichuan, China - 1 a 3 milhões de habitantes desta província foram exterminados pelo exército de Zhang Xianzhong.
Setembro/Outubro 1758 - Lisboa: O Processo dos Távoras, liderado por Sebastião José de Carvalho e Melo (mais tarde Marquês de Pombal), leva ao cadafalso cerca de 20 a 30 desgraçados - incluindo crianças - com ligações a uma única família, e à prisão perpétua ou degredo de centenas de civis e padres jesuítas. Tudo isto com notáveis requintes de malvadez, que incluem torturas imaginativas de inspiração medieval e mortes bárbaras (estrangulamento e desmembramento simultâneo). Ninguém teve direito a algo parecido com um julgamento ou possibilidade de apelo.
1794 - Varsóvia - 20.000 polacos são assassinados por um exército russo em expedição de pilhagem.
Feitas as contas e colocadas as devidas dúvidas sobre os números "oficiais" e "oficiosos" percebemos rapidamente que a realidade da Inquisição, sendo com certeza sinistra, não é de todo comparável, tanto em escala de mortos como em impacto fascista sobre as sociedades, a uma multitude de outros fenómenos, muitos deles de brevíssima duração. E não merece por isso o ódio exclusivo e a desinformação insana a que tem sido sujeita. Todas as igrejas matam. Umas matam mais que outras (o terror islâmico já matou mais de 2300 pessoas na Europa, desde Setembro de 2001). A Católica, se calhar e com boa matemática, até é das que menos matam, muito por causa do carácter extremamente pacifista do seu profeta fundador.
Tudo isto não impede porém que os próprios representantes contemporâneos da Igreja cavalguem de rédea solta sobre a falaciosa hipérbole. Escrevo este post precisamente porque ainda agora estava a ler o Padre Carreira das Neves, que na edição do Expresso sobre a Bíblia, comenta assim, no fecho do volume sobre a natureza do sacrifício nas escrituras:
"Jesus corta certeiro o vendaval da violência mimética, de toda e qualquer rivalidade, a nível pessoal, tribal, nacional, internacional. É um sistema em acção contínua, totalmente oposto ao sistema dos terroristas islâmicos, nazismos, socialismos estalinistas, mas também inquisições da Igreja Católica. Quanto tempo levará ainda para aprendermos a lição?"
Ora, comparar os trabalhos funerários da Inquisição aos exercícios genocidas de radicais islâmicos, nacional-socialistas e bolcheviques sanguinários é um disparate factual de tal forma exuberante que, à primeira vista, é de difícil explicação. Porém, basta consultarmos a opinião publicada por este padre, ou lermos os diversos volumes desta edição do Expresso, para percebermos que Carreira das Neves só é padre porque não encontrou entretanto na sua vida uma profissão mais promissora. Fundamentalmente ateu, abertamente anti-católico, o Padre Carreira das Neves devia ser despedido, se o Vaticano fosse uma organização minimamente funcional. Se o Vaticano não fosse actualmente liderado por outro padre ateu. Assim, passa por credível crítico e moderado analista dos sagrados testamentos. E mente sobre a Inquisição com quantos dentes tem a sua pena e como qualquer leigo marxista. Não porque ignora os factos, claro. Mas porque é inimigo da Igreja. E da verdade histórica.