Neste país fatalista e marginal, o estado é pai, filho e espírito santo, trindade parasitária e corrupta, kafkiana máquina de compadrios perpétuos e paternalismos eternos que nos embala o contentamento infeliz; gastador, disfuncional e gripado motor a gasóleo que é responsável pelo milenar miserabilismo crónico a que fomos desde sempre e para sempre condenados; mística entidade omnipresente e omnipotente sem a qual não conseguimos levantar as patas dianteiras.
Assim sendo, não é de esperar que a dissidência contra-regimental e anti-autoritária ganhe expressão substantiva no nosso país. Se gentes historicamente amantes da liberdade individual, como os ingleses, os franceses e os americanos, cederam as suas tradições constitucionais e consuetudinárias ao primeiro susto pandémico e são hoje território em larga medida dominado cultural, política e economicamente por forças de inspiração totalitária, não somos nós, fadistas da causa pública e obrigados ao globalismo colectivista da cartilha de Bruxelas, que vamos fazer diferente.
Neste contexto, foi sem surpresa que testemunhei a económica participação popular na versão lisboeta do Worldwide Freedom Rally de ontem. À chegada ao Marquês de Pombal, pelas 15h00, o corpo policial destacado para este perigosíssimo evento concorria em número de efectivos com a totalidade dos manifestantes ali reunidos, mais coisa menos coisa.
O amadorismo material e retórico; os cartazes meio hippies, que falam de paz e amor e liberdade e harmonia universal; os slogans, na sua quase totalidade não pejorativos; os cantares surpreendentemente cordatos; a recusa da linguagem profana (até por causa das muitas famílias com crianças) dominaram o conteúdo coreográfico.
Esta pequena e completamente pacífica manifestação, carregada de famílias que levaram as crianças e de cidadãos que aproveitaram para passear o cão, não mereceu o aparato policial que hoje foi instalado mesmo em cima do seu ponto de encontro.O dia está bom, a rapariga que aparentemente organizou o evento diz que quer dar muitos beijinhos a toda a gente porque é muito beijoqueira e a malta, razoavelmente bem disposta, ouve música pop de autores que não concordam nada com o ideal ali manifestado. Que se pudessem enfiavam a malta que ali se manifesta em alegres campos de concentração. A ironia parece escapar-lhes.
A dissonante diversidade ideológica espantou-me, devo confessar. Nunca me passou pela cabeça que ia estar num comício onde uma das oradoras é a Joana Amaral Dias. Se calhar estou a ser injusto com a rapariga, que é afinal uma libertária. Não sei. Mas também esta espécie amigável de Benfica Sporting contribuiu deveras para o ambiente descontraído, dir-se-ia alegre, que se experimentou no Marquês e na marcha para o Largo de Camões.
Vi criaturas de toda a espécie nesta reunião de escassos lisboetas que amam a liberdade e recusam o medo e a mentira. Às tantas passa por mim um tipo com uma bandeira que é um meme libertário americano e que provavelmente só ele e eu é que entendemos. Segue-se-lhe um completo freak acabado de sair de uma qualquer comunidade new age da paz universal. Atrás vem o youtuber alentejano e depois dele caminha uma senhora que apela, com histriónica intensidade, à amplificação do evento nas redes sociais. À senhora escapa também a ironia: por vontade dos mestres do universo que são proprietários das redes sociais que ela recomenda, o seu direito à saúde pública só poderia ser exercido através da posse de um certificado de vacinação. Entre outras crueldades.
No trajecto para o Bairro Alto, o pequeno mas algo barulhento pelotão recebeu reforços e no Príncipe Real talvez já somasse umas mil, mil e quinhentas almas abençoadas por uma magnífica tarde de Sábado. Quanto mais vivo, mais acredito que Deus ama Portugal.
Chegados ao Largo de Camões, não posso deixar de reflectir sobre a fragilidade destes momentos, assim flagrantemente minoritários, meio improvisados e fáceis de esmagar por absoluto, no actual contexto tendencialmente despótico. E o inocente optimismo deste punhado de entusiastas deixa-me deveras preocupado. Não fiquei nada com a ideia de que as pessoas entendem o poder efectivo e a determinação maniqueísta das forças que pretendem combater.
Fico porém com a sensação, boa, de que, muito lentamente e até em Portugal, os cidadãos estão progressivamente a tomar consciência de que está a acontecer às sociedades ocidentais algo de profundamente errado. Algo que lhes parece muito parecido com outros episódios históricos, onde imperou o mal absoluto. As pessoas começam a perceber, a conta gotas, sim, mas ainda assim, que afinal não vivem livres. Que estão a ser mentidas pela imprensa, amordaçadas pelas "autoridades", arrebanhadas por corporativos grupos de interesse que não controlam e doutrinadas em valores que não subscrevem.
Talvez mais importante ainda: os cidadãos estão finalmente a descobrir que a salvaguarda das plataformas constitucionais é da sua responsabilidade. Que a manutenção das democracias liberais é ofício dos seus eleitores constituintes.
E isto, não é dizer pouco.
Até porque o Worldwide Freedom Rally foi bastante mais concorrido noutras capitais da Europa. Mesmo em Londres, já com as restrições levantadas, a insistência dissidente teve significado acrescido.
Dá gosto e boa esperança ver estas multidões reunidas pela verdade e pela liberdade. Mas é como tenho dito: cuidado com a luz ao fim do túnel.