domingo, janeiro 23, 2022

Rua da Inocência.

Os portugueses não são propriamente reconhecidos pelos seus valores libertários, muito antes pelo contrário. Portugal viveu mergulhado sete séculos num desqualificado regime absolutista, só para sofrer depois um século de golpes liberais e contra-golpes miguelistas, uma primeira república de caciques e bandidos, 48 anos de totalitarismo corporativista e, na terceira república, outros 48 de asfixiante e ruinosa hegemonia estatal.

Neste país fatalista e marginal, o estado é pai, filho e espírito santo, trindade parasitária e corrupta, kafkiana máquina de compadrios perpétuos e paternalismos eternos que nos embala o contentamento infeliz; gastador, disfuncional e gripado motor a gasóleo que é responsável pelo milenar miserabilismo crónico a que fomos desde sempre e para sempre condenados; mística entidade omnipresente e omnipotente sem a qual não conseguimos levantar as patas dianteiras.

Assim sendo, não é de esperar que a dissidência contra-regimental e anti-autoritária ganhe expressão substantiva no nosso país. Se gentes historicamente amantes da liberdade individual, como os ingleses, os franceses e os americanos, cederam as suas tradições constitucionais e consuetudinárias ao primeiro susto pandémico e são hoje território em larga medida dominado cultural, política e economicamente por forças de inspiração totalitária, não somos nós, fadistas da causa pública e obrigados ao globalismo colectivista da cartilha de Bruxelas, que vamos fazer diferente.

Neste contexto, foi sem surpresa que testemunhei a económica participação popular na versão lisboeta do Worldwide Freedom Rally de ontem. À chegada ao Marquês de Pombal, pelas 15h00, o corpo policial destacado para este perigosíssimo evento concorria em número de efectivos com a totalidade dos manifestantes ali reunidos, mais coisa menos coisa.

Será talvez assertivo sublinhar que as centenas de pessoas que aqui se juntaram não podiam ter vontade mais ordeira e civilizada: o ambiente geral era o de um encontro entre amigos cujo convite foi excessivamente levado a sério. As pessoas apareceram com os cães, como quem aproveitou para dar um passeio pela baixa. Houve algum folclore, mas mais humorístico que propagandista.

O amadorismo material e retórico; os cartazes meio hippies, que falam de paz e amor e liberdade e harmonia universal; os slogans, na sua quase totalidade não pejorativos; os cantares surpreendentemente cordatos; a recusa da linguagem profana (até por causa das muitas famílias com crianças) dominaram o conteúdo coreográfico.

Esta pequena e completamente pacífica manifestação, carregada de famílias que levaram as crianças e de cidadãos que aproveitaram para passear o cão, não mereceu o aparato policial que hoje foi instalado mesmo em cima do seu ponto de encontro.

O dia está bom, a rapariga que aparentemente organizou o evento diz que quer dar muitos beijinhos a toda a gente porque é muito beijoqueira e a malta, razoavelmente bem disposta, ouve música pop de autores que não concordam nada com o ideal ali manifestado. Que se pudessem enfiavam a malta que ali se manifesta em alegres campos de concentração. A ironia parece escapar-lhes.



A dissonante diversidade ideológica espantou-me, devo confessar. Nunca me passou pela cabeça que ia estar num comício onde uma das oradoras é a Joana Amaral Dias. Se calhar estou a ser injusto com a rapariga, que é afinal uma libertária. Não sei. Mas também esta espécie amigável de Benfica Sporting contribuiu deveras para o ambiente descontraído, dir-se-ia alegre, que se experimentou no Marquês e na marcha para o Largo de Camões.



Vi criaturas de toda a espécie nesta reunião de escassos lisboetas que amam a liberdade e recusam o medo e a mentira. Às tantas passa por mim um tipo com uma bandeira que é um meme libertário americano e que provavelmente só ele e eu é que entendemos. Segue-se-lhe um completo freak acabado de sair de uma qualquer comunidade new age da paz universal. Atrás vem o youtuber alentejano e depois dele caminha uma senhora que apela, com histriónica intensidade, à amplificação do evento nas redes sociais. À senhora escapa também a ironia: por vontade dos mestres do universo que são proprietários das redes sociais que ela recomenda, o seu direito à saúde pública só poderia ser exercido através da posse de um certificado de vacinação. Entre outras crueldades.

No trajecto para o Bairro Alto, o pequeno mas algo barulhento pelotão recebeu reforços e no Príncipe Real talvez já somasse umas mil, mil e quinhentas almas abençoadas por uma magnífica tarde de Sábado. Quanto mais vivo, mais acredito que Deus ama Portugal.



Chegados ao Largo de Camões, não posso deixar de reflectir sobre a fragilidade destes momentos, assim flagrantemente minoritários, meio improvisados e fáceis de esmagar por absoluto, no actual contexto tendencialmente despótico. E o inocente optimismo deste punhado de entusiastas deixa-me deveras preocupado. Não fiquei nada com a ideia de que as pessoas entendem o poder efectivo e a determinação maniqueísta das forças que pretendem combater.



Fico porém com a sensação, boa, de que, muito lentamente e até em Portugal, os cidadãos estão progressivamente a tomar consciência de que está a acontecer às sociedades ocidentais algo de profundamente errado. Algo que lhes parece muito parecido com outros episódios históricos, onde imperou o mal absoluto. As pessoas começam a perceber, a conta gotas, sim, mas ainda assim, que afinal não vivem livres. Que estão a ser mentidas pela imprensa, amordaçadas pelas "autoridades", arrebanhadas por corporativos grupos de interesse que não controlam e doutrinadas em valores que não subscrevem.

Talvez mais importante ainda: os cidadãos estão finalmente a descobrir que a salvaguarda das plataformas constitucionais é da sua responsabilidade. Que a manutenção das democracias liberais é ofício dos seus eleitores constituintes.

E isto, não é dizer pouco.

Até porque o Worldwide Freedom Rally foi bastante mais concorrido noutras capitais da Europa. Mesmo em Londres, já com as restrições levantadas, a insistência dissidente teve significado acrescido.



Dá gosto e boa esperança ver estas multidões reunidas pela verdade e pela liberdade. Mas é como tenho dito: cuidado com a luz ao fim do túnel.