domingo, agosto 28, 2022

O meu professor morreu.

António Marques Bessa (1949-2022), o meu sagrado professor do ISCSP, morreu a 17 de Agosto, mas eu só soube agora mesmo. Não há homem à superfície deste velho e gasto planeta que tenha sido mais influente sobre a minha maneira de pensar a história, a economia, a política e a condição humana.

Assistir às aulas do professor perfeito foi um privilégio que, sem o merecer, os deuses decidiram oferecer-me. Nunca mais encontrei ninguém que chegasse aos calcanhares deste gigante, verdadeiro super-herói das academias todas. 

Lúcido como um profeta judeu, articulado como um senador romano, sábio como um filósofo grego, este senhor era uma droga dura. Uma vez que lhe apanhasses o vício, nunca mais querias outra coisa.

Um dos estudos mais geniais alguma vez escritos em língua portuguesa sobre a teoria das elites é um calhamaço chamado "Quem Governa?" da autoria deste meu querido ser humano. Lês o livro e não precisas de aprofundar muito mais o tema. Está lá tudo escarrapachado e a obra continua actual como o diabo.

O Marques Bessa é aquela espécie de ser humano que não acaba. É um imortal que não cabe em elegias nem em velórios nem em biografias nem em remorsos nem em saudades nem em sítio nenhum que não seja o panteão dos que ficam vivos, para sempre.

Lembro-me de uma aula de História Económico-Social que, dedicada à "Hierarquia das Necessidades" de Maslow, começou mais ou menos assim:

"O homem tem fome e inventa a padaria. Com o estômago cheio de pão, anseia pela carne. Cumpre a caça e sacia essa ansiedade. A seguir quer caviar. Tem caviar, quer heroína. Tem heroína quer aterrar na lua. Aterra na lua e suicida-se por falta de saber o que quer a partir daí."

A malta sentava-se nas escadas da sala magna do ISCSP para ouvir o mago dissertar, porque as duzentas cadeiras não satisfaziam a procura. A eloquência brutal, o esclarecimento cristalino, a informalidade do discurso, a genialidade da análise, não têm paralelo. 

Não há como substituir o intelectual insubstituível.

Este épico druida das ciência sociais, maior que a própria vida, embebedou-se comigo. Confessou-me cenas. Ensinou-me verdades e alertou-me para mentiras. Levantou-se certa da vez da mesa onde jantava para dizer à minha mãe que de alguma maneira tinha apreciado o seu aluno mísero. Elogiou-me publicamente a propósito de uma frequência a que atribuiu doze valores (nota que dispensava a oral e que, por isso, ele muito rara e reticentemente distribuía pelas provas escritas de alguns imbecis por quem alimentava misericordiosa empatia). Fez da História um romance e da Economia um livro aberto, para meu bom entendimento da realidade das coisas. 

Devo-lhe tanto. Dei-lhe nada.

Estou triste, porra.