Vista desta forma, a poesia é um labirinto borgiano onde a sintaxe e a semântica se perdem em incontáveis variações, na infinitude das estantes da biblioteca de Deus.
Não por acaso, o exemplo que trago à conversa é precisamente o de "Tyger", o célebre poema de Blake de que Jorge Luis Borges tanto gostava. Eis o poema original em Inglês:
Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?
In what distant deeps or skies
Burnt the fire of thine eyes?
On what wings dare he aspire?
What the hand dare sieze the fire?
And what shoulder, & what art,
Could twist the sinews of thy heart?
And when thy heart began to beat,
What dread hand? & what dread feet?
What the hammer? what the chain?
In what furnace was thy brain?
What the anvil? what dread grasp
Dare its deadly terrors clasp?
When the stars threw down their spears,
And watered heaven with their tears,
Did he smile his work to see?
Did he who made the Lamb make thee?
Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Dare frame thy fearful symmetry?
David Mourão Ferreira, num exercício de brilhantismo métrico, conseguiu uma tradução para português que, milagrosamente, consegue ser mais económica que o original.
Tigre, tigre, claro incêndio,
Nas selvas da noite ardendo,
Que mão, que olhar traçaria
Tão tremenda simetria?
De que abismos, de que céus
Ferem fogo os olhos teus?
Sobre que asas ousa erguer-se?
Em que brasas reacender-se?
Qual o ombro de onde vibra
No teu peito cada fibra?
E quando a bater começa,
que mão, que pé que o impeça?
Que martelo, que corrente,
Fez teu cérebro incandescente?
Que bigorna, ou rude garra,
Teu mortal terror agarra?
Quando dos astros os dardos
Humedecem o céu pardo,
Será que ao ver-te sorri
Quem fez o cordeiro e a ti?
Tigre, tigre, claro incêndio,
Nas selvas da noite ardendo,
Que mão, que olhar traçaria
Tão tremenda simetria?
Augusto Campos, o poeta brasileiro, conseguiu uma versão que também é de austeridade silábica, mas que se dá a alguma liberdade criativa. Logo no primeiro verso percebemos que o desvio entre as duas versões vai ser brutal. E é. Há vários segmentos que ninguém diria traduzidos do mesmo original.
Tigre! Tigre! Brilho, brasa
que a furna noturna abrasa,
que olho ou mão armaria
tua feroz simetria?
Em que céu se foi forjar
o fogo do teu olhar?
Em que asas veio a chama?
Que mão colheu esta flama?
Que força fez retorcer
em nervos todo o teu ser?
E o som do teu coração
de aço, que cor, que ação?
Teu cérebro, quem o malha?
Que martelo? Que fornalha
o moldou? Que mão, que garra
seu terror mortal amarra?
Quando as lanças das estrelas
cortaram os céus, ao vê-las,
quem as fez sorriu talvez?
Quem fez a ovelha te fez?
Tigre! Tigre! Brilho, brasa
que a furna noturna abrasa,
que olho ou mão armaria
tua feroz simetria?
Eu também já tentei uma variação destes geniais versos. É, claro, mais indisciplinada que as anteriores. Mas contribui para o labirinto, para a incerteza, para o exercício de meta-literatura que é converter um poema para uma língua que lhe é alienígena.
Tigre! tigre! Brilhas na furna
Da escura floresta nocturna,
Que gesto, que olhar imperecível
talhou essa simetria temível?
Em que abismo de céu sem lugar
Arde a chama do teu olhar?
Em que asas lançar-se ousou
A mão que esse fogo cercou?
Que ombros, que artes vão
muscular o teu coração?
E quando começa a bater
Que mãos e pés vêm a ser?
Que martelo, que corrente,
Que fornalha fundiu tua mente?
Em que bigorna foram batidos
Os terrores que guardas cingidos?
Quando as estrelas lançam o manto
E lavam os céus com esse pranto,
Perante sua criação é Ele que sorri?
Quem criou o cordeiro, criou-te a ti?
Tigre! tigre! Brilhas na furna
Da escura floresta nocturna,
Que gesto, que olhar imperecível
talhou essa simetria temível?
Apesar das dissonâncias e dos desvios, na forma e - muitas vezes - no significado, os problemas decorrentes da tradução do objecto lírico não são necessariamente um mal. Podemos até projectar essas dificuldades como uma forma da literatura criar ramificações, quase de forma automática. Um poema sujeito a milhares de traduções, como este de William Blake, vive milhares de vezes. Ressuscita todos os dias. É escrito de outra maneira, lido de outra forma, pela posteridade a dentro.
E isto já para não falar das traduções para as línguas ocidentais da poesia asiática, assunto que já prometi abordar aqui no Blogville, mas que se calhar vai sobrar para o Contracultura. Porque dá pano para mangas. Muitas mangas. Mangas que nunca mais acabam. Como versos traduzidos.