domingo, maio 28, 2023

Para vencer o Giro não basta sobreviver-lhe.
É preciso ter coração de leão e pernas para a glória.

A edição de 2023 do Giro de Itália poderia ter sido atípica, e foi-o durante uma boa parte do seu decorrer. Mas acabou por ser afinal como quase sempre: dura, disputada e incerta.

Acesa durante a primeira semana, apagada durante a segunda e de novo relançada no seu último terço, a prova sofreu muito no seu índice competitivo por ter perdido o primeiro candidato à vitória - Remco Evenepoel - logo no primeiro dia de descanso, e Tao Geoghegan Hart pouco tempo depois, o vencedor da edição de 2020 e que parecia destinado a discutir com o belga o primeiro lugar da classificação geral.

Perante estes abandonos, e outros muitos, as equipas de topo ficaram, às páginas tantas, estratégica e tacticamente desorientadas. A Soudal QuickStep chegou este domingo a Roma com dois atletas apenas. A Ineos Granadiers com cinco (embora com três no top 10). A UAE nunca pensou que teria que comandar o pelotão. E a Jumbo Visma, que tinha partido para a prova com cinco entradas de última hora e parecia condenada a um giro difícil e discreto, apostando tudo no génio de Primoz Roglic e na capacidade de sacrifício de Sepp Kuss, acabou por terminar os 21 dias da competição com o seu elenco integral e, na última etapa "a doer", uma duríssima crono-escalada de mais de 40 quilómetros, roubar a camisola rosa a Geraint Thomas, depois de um esforço monumental de Primoz Roglic, que conseguiu ganhar quarenta segundos ao britânico, mesmo depois de ter que parar para colocar a corrente na transmissão da sua bicicleta, que se soltou num momento em que uma irregularidade do asfalto não compaginou com o binário hercúleo que o eslovaco estava a meter na estrada.

Este foi aliás o momento chave das três semanas. Toda a gente que gosta de ciclismo se lembrou do contra-relógio final do Tour de França de há três anos atrás, quando Roglic perdeu a prova para Pogacar, também a subir montanha acima. Desta vez e contra o relógio tanto como contra o azar, Roglic triunfou. E merecidamente, demonstrando que para vencer o Giro é preciso mais do que sobreviver às dificuldades e adversidades da prova. É preciso ter corpo e alma de campeão. E capacidade de transcendência.

Depois de, na décima sexta etapa, João Almeida e Geraint Thomas se terem aliado para fazer o esloveno sofrer a bom sofrer, nas duas etapas de montanha que restavam antes da crono-escalada, Roglic mostrou que continuava a bom nível, e, desta feita invertendo a aliança, juntou-se a Thomas para deixar Almeida condenado ao último lugar do pódio. Quando chegou à crono-escalada, o ciclista da Jumbo tinha vinte e poucos segundo de atraso para o inglês da Ineos. A oportunidade de ganhar uma grande volta para além da espanhola, onde já triunfou por três vezes, estava lá. E o esloveno não a desperdiçou, demonstrando, se preciso fosse demonstrar, num esforço épico e inesquecível, toda a sua classe e fibra de grande campeão.

Ao fazer terceiro na classificação geral, João Almeida fez história, juntando-se a Joaquim Agostinho no restrito clube dos ciclistas profissionais portugueses que conquistaram um lugar no pódio das 3 grandes voltas do circuito mundial, ganhando o prémio da juventude e ainda uma etapa. Está de parabéns. Mas está também longe de convencer como candidato a uma vitória, seja no Giro, seja no Tour, seja na Vuelta. Na decisiva crono-escalada de Sábado, Almeida ficou a 50 segundos de Roglic, apesar até de ter feito terceiro na etapa.

Ainda assim, os adeptos de ciclismo em Portugal não se podem queixar. Têm um ciclista capaz de brilhar nos palcos mais exigentes, com regularidade e espírito combativo. E confesso que gostaria de ver o João a fazer um Tour de France, que é uma prova mais alinhada com as suas características atléticas e mentais. Isto embora a participação do ciclista de A-dos-Francos na prova francesa implicará sempre o serviço ao atleta maior da sua equipa: Tadej Pogacar.

Mas como constantemente nos é ensinado pelos deuses do ciclismo, e como foi bem evidente nesta edição do Giro, estamos sempre longe de fazer uma mínima ideia sobre o que é que pode acontecer numa prova de 3 semanas, disputada por atletas de elite mundial.