Sei, hoje, 6 de Abril de 2024, com a certeza de dentes cerrados e joelhos doridos,
Com a convicção batalhada de décadas, sofrida de desgostos que já não sei contar,
Exasperada de triunfos que não tive,
Que me espera um tribunal.
Vou ser julgado, analisado, tributado pelo que fiz, pelo que não fiz,
Pelo que fui capaz e incapaz.
Vou ser submetido ao critério de uma entidade que nem sei imaginar.
Vou ser salvo ou condenado pelo mistério.
Vou prestar contas, falidas umas, prósperas outras,
Mas todas sujeitas a uma contabilidade
Imprevista.
Sei que isso vai acontecer como sei que a maré sobe e desce e obedece
Aos caprichos da Lua.
Sei desse judicial processo e aceito-o, para o mal e para o bem.
Sei que mereço o juízo final, seja ele qual for.
Sei que sou mais que isto de ter dores de cabeça. Sei que sou
Mais que isto de ter contracturas nas costas e doenças nos olhos.
Sei que a existência não se limita
Ao processo de recuo das gengivas.
Sei que sou mais que um organismo frágil e decadente,
Mais que um autómato que precisa de ir à casa de banho,
E que fica feliz por causa de uma dourada que foi correctamente grelhada.
Sei que hei-de um dia, num sítio qualquer do espaço-tempo, ser livre da barba
E das olheiras.
Sei que o meu cérebro não é a minha alma e que a consciência será um produto
Dessa mistura danada.
Sei que há um conselho de administração por trás deste empreendimento.
Um programador na origem deste programa.
Um publicitário que criou esta campanha.
Um comediante que contou esta piada.
Um novelista que esgalhou este romance.
Um juiz.
Sei que faço parte de um movimento que transcende largamente
A necessidade que tenho de cigarros.
Sei que existem valores morais, eternos, teimosos sobre a imensidão
Do cosmos.
Sei que detesto surpresas e que vou tê-las, no fim, até porque o fim,
Mesmo que eu o adivinhe,
Será sempre, surpreendentemente, um princípio.