quinta-feira, novembro 12, 2015

A banalidade do mal, outra vez.



Uma das questões mais intrigantes - e interessantes - que podem ser colocadas sobre a natureza humana é esta: porque raio é que pessoas vulgares, funcionais, racionais, civilizadas, moralmente capazes de amarem a sua família e de serem solidárias com amigos ou estranhos, culturalmente aptas a apreciar os Concertos de Brandenburgo ou uma novela de Goethe, cumprem simultaneamente tarefas sinistras, como enfiar judeus em câmaras de gás, fuzilar milhares de civis ou matar à fome milhões de camponeses?

No âmbito da filosofia, Hannah Arendt é provavelmente a grande autoridade nesta matéria e já aqui no blog escrevi sobre ela, mas no que respeita à psicologia e à sociologia é Stanley Milgram o homem-mestre deste complicado assunto.

Em 1962, Milgram conduziu na Universidade de Yale aquela que é talvez a mais polémica experiência da história das ciência sociais. A experiência explica-se assim (texto adaptado da Wikipédia):

Os voluntários foram recrutados para uma experiência de laboratório de investigação de "aprendizagem". Os participantes foram 40 homens, com idades entre 20 e 50 anos, cujas profissões variavam entre não qualificadas e especialistas. Os sujeitos foram pagos pela sua participação (4,50 USD). 
No início da experiência, foram apresentados a outro participante, que na verdade era um actor, cúmplice do estudo, e convidados a tirar o palito maior para determinar o seu papel na experiência - "aluno" ou "professor" - embora o sorteio fosse um logro, já que  o cúmplice era sempre o "aluno". 
Havia também um assistente, vestido com uma bata cinzenta, interpretado por um discípulo de Milgram. Foram usadas duas salas do Laboratório de Interacção de Yale - uma para o "aluno"-actor (com uma cadeira elétrica) e outra para o "professor"-sujeito da experiência, com um gerador de choques elétricos. 
Depois que o "aluno" tivesse memorizado uma lista de pares de palavras que lhe foi dada para aprender, o "professor" iria testar a sua memória, dizendo por um microfone a primeira palavra e pedindo ao "aluno" para recordar a sua parceira (fazer o par) de uma lista de quatro possíveis escolhas.
O "professor" teria que administrar um choque elétrico de cada vez que o aluno cometesse um erro, aumentando a intensidade do choque progressivamente. Existiam 30 botões no gerador de choques eléctricos, que accionavam cargas entre 15 volts (ligeiro choque) e 450 volts (choque grave). Logo depois das primeiras perguntas, o "aluno" começava a dar respostas erradas. A dada altura, o "professor" ouvia a voz do "aluno" a gritar de dor e - mais à frente" - a pedir para ser solto da cadeira eléctrica e a apelar para o fim da experiência. Quando o "professor" se recusava a administrar um choque, era incentivado pelo assistente a continuar com o procedimento. Os estímulos eram os seguintes:

Estímulo 1: Por favor, continue.
Estímulo 2: A experiência requer que você continue.
Estímulo 3: É absolutamente essencial que você continue.
Estímulo 4: Você não tem outra escolha, a não ser continuar.

Resultados: 65% (dois terços) dos participantes (ou seja, "professores") continuou até o mais alto nível de 450 volts. Todos os participantes continuaram até 300 volts.

Perante os resultados absolutamente deprimentes, ficou claro que existe no ser humano uma tendência assustadora para a obediência irracional e para agir em conformidade com o papel social. Os sujeitos sofriam com cada choque que infligiam ao "aluno", protestavam com o assistente, mordiam-se todos, riam de nervosismo e desespero, suavam as estopinhas todas, mas continuavam a inflingir o suplício do qual tinham sido incumbidos. Todos eles chegaram ao nível de descarga de 300 volts. E a larga maioria completou a experiência, que só terminava na descarga de 450 volts (!).
Esta capacidade de torturar consistentemente um estranho apenas porque um assistente de laboratório insiste, calmamente e sem qualquer ameaça, que a experiência deve continuar, é arrepiante; explica muito sobre os instintos básicos que nos governam o comportamento individual e psico-social e fundamenta a tese da banalidade do mal: uma pessoa dita normal pode de facto cometer crimes hediondos, dado um contexto social específico.
Talvez por isso, a experiência de Milgram foi alvo de acesas críticas e a sua carreira académica foi severamente prejudicada. As pessoas não gostam de ser confrontadas com os seus demónios. Mas deviam sê-lo mais vezes. Se não estivermos conscientes de quem somos, e do mal que vive dentro de nós, dificilmente o poderemos aplacar. 
Isto tudo vem a propósito de "Experimenter", o competentíssimo, criativo e enxuto filme de Michael Almereyda, muito bem interpretado por Peter Sarsgaard e Winona Ryder, que recomendo vivamente a quem gosta de cinema, e principalmente àqueles que se interessam por ciências sociais.