sábado, janeiro 08, 2005

- - - OS DOZE CÉSARES - - - - - - - - - - - - - - - - - Livro I: Suetónio ou a lamparina de Adriano.

Bem-vindos ao Império Romano. Faço aqui o início de um conjunto de textos que têm por fundamento o que eu considero ser um dos livros mais importantes na história da literatura: Os Doze Césares. A obra é da genial autoria de um senhor chamado Caius Suetonius Tranquillus, que viveu entre os anos 75 e 160 (ou 69 e 140, conforme o sábio) da nossa era. Para conseguir escrever sobre isto sem a pretensão do erudito e livre do medo dos plágios, devo esclarecer desde já que usei da maior parcimónia no que se deve às fontes. Na verdade, sou tão atrevido que me basta a leitura do livro em causa (vezes três vezes), a pesquisa de dois ou três sites do género Wikipedia.com e Livius.org, o senso comum, a cultura geral e o cepticismo de Edward Gibbon para achar que, com tempo e a colaboração dos deuses, levarei a bom termo a tarefa audaciosa de meter ao barulho deste blog a mais solene, sexual, hedionda, folhetinesca, facínora, visceral, triunfante, amargurada, extravagante e épica história que já se contou de um império. Nem outra coisa, afinal, seria de esperar. Suetónio raramente citava a origem das suas revelações (confiando abundante e preferencialmente na proverbial má língua) e ainda assim influenciou de tal maneira o espírito historicista e romanesco do mundo ocidental, que a sua grande rábula biográfica serve muito bem para doutoramentos contemporâneos e o seu estilo narrativo e conceptual é ainda hoje "samplado" por toda a gente. Desde o próprio Gibbon novecentista ao muito-Século-XX Robert Graves, que para esgalhar um dos momentos mais célebres da BBC ("Eu, Cláudio"), adoptou textual e contextualmente a prosa suculenta do grande mestre Tranquillus.

Mas começando pelo princípio. A forma de governo de Roma iniciou-se pela instauração de uma República governada por dois cônsules eleitos anualmente, apoiada por um colégio de senadores e esfaqueada no ano de 44 a.C. com o assassinato do general Júlio César, cujos herdeiros constituíram a gloriosa massa genética dos primeiros imperadores.
Caius Suetonius Tranquillus nasceu um século e tal depois e, improvavelmente, numa cidadela romana em África - Hippo Regius - no território a que hoje chamamos Argélia.
Filho de um nobre da Ordem Equestre (segundos poderosos depois dos senadores), Suetónio cumpriu serviço militar , alistando-se no exército vencido de Otho, na guerra civil dos Quatro Imperadores.
Suetónio foi um biógrafo reputado até ao momento central do enredo, quando foi nomeado secretário privado do imperador Adriano. E é aqui é que a porca torce o rabo. Porque se a famosa biografia dos césares é o primeiro documento de ciência da história na história da humanidade, e apesar disso consegue ser sensacionalista (Pessoa diria - sensacionista) e rocambulesco e perfeitamente editável no Sunday Mirror da antiguidade clássica, a verdade, verdadinha, é que foi encomendado por um político. Ah, sim, é que Adriano, muito mais que um imperador, um engenheiro, um militar ou um filósofo, era um Político. Um político como toda a gente deveria querer ter um. E com certeza que pensou na sua posteridade. E com certeza que influenciou a narrativa do seu secretário privado. Suetónio foi assim o génio saído da lamparina que Adriano esfregou desesperadamente. E o rei entre os reis só tinha mesmo um desejo: que a história de Roma até ao século II D.C. fosse escrita segundo o seu interesse específico. Quero eu dizer que, sendo a obra uma verdadeira biblia sobre o Império Romano, é também - e como a bíblia também é - um manifesto politizado, exagerado, manipulado, partidarizado, adulterado, falsificado. E fascinante.
Pagão dos sete costados, Suetónio foi até um dos primeiros historiadores de Jesus Cristo, e, da mesma maneira que Constantino escreveu a cristandade como ainda a entendemos hoje, este foi substantivamente o homem que nos deu a ideia geral de como viviam de forma nobre e obscena, sanguinária e apaixonada, os grandes césares que vampirizaram para sempre a análise das elites e do exercício do poder.
(cont.)