quarta-feira, agosto 10, 2005
Um Verão do Lado de Swan.
O Guadiana Internacional; que vibra com as marés oceânicas e que, por isso, mantém este caudal majestático sobre o deserto acidentado do Sudeste Alentejano; é uma nação de memórias, um país líquido e prenhe de castros antigos e ódios ancestrais, de margens abrutas e ventosas com chilrreantes canaviais que de noite competem com o silêncio ensurdecedor das estrelas objectivamente falaciosas em cada pulsar. Combray, o idílio de Proust - esse anjo monocórdico que me fala por santas metáforas (que me fala de aristocratas que limpam o monóculo como quem muda um penso), Combray, o verdadeiro paraíso perdido, não tem o Guadiana de grande caudal salgado, agreste e venerável, falso de correntes, perigo fluvial e amigo de marinheiros, que lhe dê banho à literatura! Combray, por todo o amor que Proust tem pelos nomes, não ganha em glória nem em sonoplastia a Guerreiros do Rio, Guerreiros do Rio, caramba, um nome de uma terra como devem ser os nomes das terras que marcam a presença funesta dos homens!; um etimologismo grandioso e quizilento onde se encerra a paz que há no mundo e a insuficiência que há no homem. Combray, claro está, é um terreno para construtores de utopias: não dá lugar às realidades comesinhas da história ou da geografia e envolve Swan no primeiro mistério da existência, ele que é sujeito primordial do sindroma de Adão. Odette, o segundo patamar metafísico, substitui o pecado por culpa e, talvez por isso, lembra-me não o Guadiana mas antes o Cardeal inverso deste Alentejo que me liberta, e nele uma boca de sarjeta aberta sobre o tecido aldeão da Zambujeira, cuspindo a céu aberto e fechada rua o mijo que eu deitei por fora na casa de banho de um bar cujo nome obsceno suicidaria de pronto o bom do Marcel. Sem preocupações com a MTV, Proust passa ao lado do Festival do Sudoeste e vinga-se em Swan que se perde dentro da leitura que faço dele, uma espécie de rapto trans-material (beem him up, Scotty), para o transportar até ao reino da luz oblíqua, principado da razão pura. Passam as horas e esquecem-se os anos e as palavras permanecem estáticas, perfeitas, pérfidas e divinas. Swan deambula pelos corredores dramáticos do amor à procura em Vermeer de uma saída para o tédio, afinal fingindo e fugindo como eu da multidão que suja a bela paisagem flamenga da Costa Vicentina. Swan, o indisposto e indolente, o autómato da emoção, sem um rumo e expoliado de destinos, reverso inverso de um sentido para a vida - como um escravo regularmente sodomizado por deus - irmão gémeo de um nado morto, abandonado no ventre imenso de uma história que vive para além da cronologia relojoeira do Sapiens, nobre sobre a tragédia que o humilha, lembra-me outro amigo de Verão: Bach, ele mesmo maior que os deuses, compondo música celestial para adormecer um simples príncipe ou anunciando gloriosamente a entrada física e abjecta de um reles aristocrata na Câmara da Liga; Bach desperdiçando o talento extra-terrestre em merdas, como Swan ao sol negro do amor anti-cristão pela Senhora de Cressy.
Neste Verão, houve um certo paragrafar de Proust, um certo frasear de Bach, um certo conversar no Oceano, uma certa paixão que nasce quando amamos subitamente pessoas que conhecemos de súbito, outra certa perdição que nasce quando amamos para sempre alguém que sempre amámos, um certo amigo que acorda e sorri - e que só por isso nos faz felizes -, um sereno mergulhar no abismo de uma certa Praia, uma específica e romanesca sabedoria de um certo Rio, um determinado ladrar grato de um cão que amamos. Neste Verão houve consubstância ontológica. Afinal, é bom ter férias.