sexta-feira, janeiro 27, 2006
Caravaggio ou o drama humano.
Michelangelo Merisi, nascido no Ano do Nosso Senhor Jesus Cristo de 1571 em Caravaggio - código postal Bérgamo - é um daqueles super heróis que dão mesmo prazer a um qualquer tipo que tenha um qualquer blog.
Nem sei se tenho pinta para escrever sobre esta monstruosidade sapiens-sapiens, que por abstruso desígnio teve de conviver aos pontapés com os neandertais de um renascimento maduro e hostil para com tamanha valentia; vítima de ter nascido à morte de Leonardo e criança ainda no apogeu de Michelangelo Buonarroti (azar dos azares pelo qual trocou o seu nome de baptismo pela onomástica da pequena aldeia Lombarda que o pariu), Caravaggio é - certificadamente - um animal eleito pelos céus!
Eu explico: enquanto Roma - como qualquer outra cidade estado da península - fervia ainda em lume brando o espanto de ter Renascido esteticamente das cinzas de mil e quinhentos anos, já o Desmancha Prazeres contradizia e disputava. Cristo não viveu, nem morreu, por entre anjos e aristocratas, querubins e pontífices, demónios e magistrados, santos e príncipes. Toda a gente sabe disso porque está escrito no Novo Testamento que o Filho Primogénito do Senhor preferia - para o bem e para o mal - a companhia de putas e pescadores, bandidos e facínoras, feirantes e músicos de feira, soldados e verdugos, vagabundos e agiotas. E, o que é mais, tanto igual se pode dizer de profetas e iniciados do Antigo Testamento.
Ora se os dois almanaques de Deus são deveras explícitos, que raio, seremos de tal forma snobs e pudibundos, botas de elástico e armados em bons que nos recusamos a pintar a mitologia como ela foi de facto experimentada no campo? Herético é aquele que ignora a escumalha porque a escumalha é o fruto favorito e massificado do criador. Não se louva a deus com cosméticas de sacristia nem se serve Jesus se pintarmos os lábios do seu carrasco. E é com esta valentia, senhores, é com esta determinação, senhoras, que nasce o Naturalismo. Caravaggio excomunga a onírica renascentista e as suas referências mainstream da arte clássica para colocar as pessoas da rua na iconografia cristã. Mas - muito importante - vai mais além e preocupa-se esencialmente em capturar o sofrimento implícito nos episódios biblícos. A dor, a impotência, a humilhação, a escravidão, a brutalidade, a tortura, o intenso esgoto da vida humana.
Ele mesmo sabia daquilo que estava a pintar: Inimigo dos clássicos, mas personagem de tragédia, homem de porradas e duelos, de confrontações e bengaladas, Caravaggio envolve-se durante a sua curta vidinha num turbilhão de violência e ódio e perseguição e desventura. Preso frequentemente por pancadarias em bordeis - que deixavam vítimas muitas - e por desafouros à arte sacra - que perturbavam a glória dos tempos - este verdadeiro forcado da existência nunca se cansou de segurar a vida pela pega mais afiada.
É claro que quem vive no gume acaba por se cortar e em 1606 Caravaggio - num gesto socialmente desastrado - assassina um nobre por causa de um jogo de pallacorda. Uma coisa era matar um gajo qualquer numa tasca imunda. Outra era espancar um aristocrata até ao fim num elegante court de ténis. Expulso de Roma e proscrito em grande parte da cartografia, os quatro anos que lhe faltam cumprir são dignos de Homero: de fuga em escapadela, de perdão em traição, de desilusão em desespero, Caravaggio vai correndo a Itália em direcção à morte.
Ainda pinta à brava, mas sobretudo foge. E quando finalmente é perdoado e convidado a deixar o exílio, dá-se um daqueles equívocos de Odisseia que deitam tudo a perder, para que ganhe apenas o diabo um companheiro mais: por uma questão de saias ou por outra de vinganças, comparece lamentavelmente tarde demais ao barco da libertação; de tal forma que chegam a Roma somente os seus haveres (que serão confiscados) e as notícias, nada exageradas, de que o peregrino cineasta do grande plano, o druída entre magos do enquadramento fechado e gráfico, o sumo patriarca da luz e das sombras (aqui já há Rembrandt), o primeiro ministro de todos os realismos, Michelangelo Merisi, conhecido por amigos e inimigos pelo nome da aldeia em que nasceu, morre, com 39 venerandos anos, numa praia deserta em Porto Ercole - Código Postal Grosseto - no Ano da Graça do Nosso Senhor de 1610.