terça-feira, junho 27, 2006
- FASCÍCULO UM -
Segismundo d'Ávila, artista plástico. Cartão de visita em esmerado dourado, distribuído com parcimónia em eventos de certificado relevo. Uma personalidade de apresentação marcante, habitualmente encenada em tom azul, riscado de branco manso, calça vincada a preceito, sapato de brilho cuidado, a gravata sem sombra de ruga, lançada em torno do largo pescoço e sempre entre a agressividade de um vermelho berro ou de um amarelo torrado, de abóbora madura.
Parco de palavras, sóbrio de gestos, insondável, exibia uma compostura de solenidade cinzenta, que o impunha nos circuítos mais discretos onde se insinuava raramente pelo verbo, mas decisivamente pela relevante elegância de maneiras.
Dizia-se, a recato, que provinha de feudo abastado, de sangue azul, embora empobrecido pelo cair das gerações, já sem o esplendor do treta avô, venerável ancião metido a coisas de corte, de respeitável ciência e considerada prestação.
Orfão de mãe, devota senhora que se finara de coisa ruim, filho de um considerado cambista da Baixa subitamente arruinado pela intrusão do euro no mercado dos dinheiros - e que desaparecera sem dizer água vai - Segismundo vivia agora com uma suposta prima, ainda jovem, de opulências marcadas pelos langores que lhe escorriam, abençoados, pelos olhos magros, inigualáveis, muito vistos, dizia-se, pelas fraldas das noites pombalinas. Dizia-se ainda que era ela que lhe provia as sopas e os salmonetes e outras elementares necessidades, sem uso porém de noites de acamada envolvência.
Da respeitável actividade plástica não se lhe creditava coisa nenhuma. Nada de catálogo, nenhuma referência. Dos proventos que lhe enchiam o prato, das contas do alfaiate nada se sabia. Que jogava nos estoris e na bolsa. Que manipulava negócios escuros. Que arriscava em traficâncias de muito risco e fama vergonhosa. Coisas de polícia.
Segismundo flutuava amavelmente pelos cotovelos do bairro, distante, de cigarrilha em riste, de juba farta e prateada ao vento, portador senhorial de um mundo de mistérios. De sorriso sarcástico caído do canto do lábio carnudo, húmido, de uma sensualidade insuspeita, de olhar cinzento metálico, intimidante, passeava-se pelas coisas da vida sem paixão, do alto de uma gélida impassibilidade.
É verdade que se detinha, ocasionalmente, na observação sem pudor do mulherão com quem se cruzava, retardando o passo, de olho metido no traseiro da fêmea curvada sobre as montras de moderna lingerie. Talvez por razões puramente estéticas, como seria aceitável num homem da cor e da forma.
Segismundo d’Ávila era, assim, um personagem de relevo abstrato, não sugeria motivo de crónica, objecto de caixa alta, coisa notável de referência. Era apenas mais um dos muitos fantasmas que cruzam os caminhos do bairro sem que se saiba quem são, de onde vieram ou para onde vão. Coisas vazias que se movem sem destino, de olhos num horizonte perdido. Todavia, algo lhe veio alterar a rotina. Nada de estrondo, mas e tão só uma nota alacre, diferente, no curso da torrente sem convulsões da sua discreta existência.
(cont.)