segunda-feira, fevereiro 05, 2007
Confrontam-se no centro da perspectiva de tormenta. O homem das massas debruçado sobre uma generosa dose de Logan e, frontalmente, lívido, apequena-se o atemorizado Floriano do Ó, às voltas discretas com o habitual comprimido para a azia que lhe flagela o gástrico, sempre quando face a face com o abominável Pedrocas da Direcção Geral da TVX.
- Floriano, esta milonga das “Flores Mortas” está a conduzir-nos pelo esgoto para os serviços de urgência, segundo o Departamento Financeiro. Os custos disparam no silêncio ensurdecedor da malta do meio. Ouve-se o gargalhar do Canal XXL à distância. As audiências moram na cave, estão uma merda de assustar camelos e os anunciantes crescem como cogumelos na folha do crédito mal parado. Acabou, percebeu? Acabou. Precisamos de qualquer coisa em forte. Nada de morangos, mesmo que regados pela bagaceira extra-revigorante. Nada de pastorinhos e cabritinhos saltadores, nada de planos pastoris, salpicados de casebres e de capoeiras e de rústicos pergaminhos, avinhados de longa e adormecente exposição num lugarejo qualquer de um Alentejo quieto.
Vamos trabalhar para lá dos primeiros entrefolhos da noite, vamos acordar as gentes para uma teia de choque. Uma terapia capaz de animar alienados e subir audiências, está a ver, Floriano? Abstenção total de temáticas políticas e falatórios do tipo intelectual que não conduzem em nada ao nosso objectivo: a felicidade do anunciante. O maralhar da comunicação social já trata desses aspectos em paletes. É vital que fique entendido que não basta sugerir a mama que se adivinha sob a diáfana renda do sutien da fêmea. É dá-la toda em primeiro plano. Como não é suficiente esconder um cú de esplendores mal surripiados sob um sarrabeco de feira. Que se desnude por inteiro, num mínimo de decência, claro.
Nada de diálogos e sorrisinhos amarelos de meninos imberbes que não são capazes sequer de tocar na teta da vaca; de orientação sexual indefinida, rasgados de suspiros anémicos, vagamente entumecidos de desejos e tremeliques que não convencem ao menos a minha sogra, uma personagem crítica de muito peso.
O casting vai selecionar animais de verga pouco dados a textos seiscentistas, a monólogos e a pudores pouco rentáveis, nada de efeminados do Conservatório e das artes dramáticas de Cascais. São fundamentais os gajos da vida, de queixada dura, alimárias de maus hábitos metidos em farroupilhas do Centro Comercial da Mouraria, gente de baixo custo e sem as piolhices renvidicantes de sindicatos e outros antipáticos similares.
Precisamos de acção, de contundência, de um bom bocado de pólvora, de intriga. Nada de cedências à pantufa e ao bocejo. Um dramalhão sacudido e enigmático, que sugira por princípio uma nota de erotismo, uma ideia subentendida de velada pornografia. Nada de explícito, claro. Sabemos como isso se faz, no momento certo, desfoca-se. Não completamente, como o fazem esses dissimuladores filhos da puta num permanente tapa e destapa, entre sombras e luzes e cores que confundem o incauto. Não vamos ilustrar valores de catequese para puritanos ensonados. Quero um desses putos de vanguarda, provocativos, beligerantes, despreconceituados, tipo punk, a trabalhar com a trolha. Quero cenários minimalistas, num vazio de sombras vagas, sem acessórios que custam os olhos da cara e nos roubam o ritmo do essencial. Nada de rendinhas e sofás da Vovó. Quero uma história de encontros e desencontros, adultério e paixões explosivas, sem contenção! Afinal, o choque de corpos num motel ordinário, entre a Adélia e o Xico Russo é o momento da verdade, o estertor que não carece de mais palavras. Sequências curtas, planos duros. Eliminem-se as tias e os burocratas informados, as primas e os padastros janotas, em torno dos scones e do chá das cinco, que se interrogam, solenemente, sobre coisa nenhuma em especial, que não interessam a ninguém e que nos obrigam a pagar uma cenografia, sem retorno. As criadinhas de mini-saia e avental às bolinhas horrendas, manicaturadas, penteadas na Isabel Queirós, de beiçolas carregadas de baton e olho libidinoso no padastro da Joaninha, que invade o salão não se sabe bem porquê, não são para aqui chamadas. É forçosa uma trama feita a martelo, recheada de compromissos dúbios, subentendidos licensiosos, sorrisos inchados da sensualidade que não escapa sequer a um carregador de Santa Apolónia; sempre em crescendo, a activar a mola real do proíbido.
Floriano, está a acompanhar-me? Homem, veja televisão! Definitivamente, vamos fazer curto e duro. Algo amargo e cruel, repelente! É preciso trabalhar para as audiências: quando se pergunta à heroína quem é e de onde vem, ela limita-se a um encolher de ombros, um sorriso patético sobre um alargado e generoso decote. Ela é o mistério, o insondável, simplesmente. Não é Antonieta, filha de Chaplin, Pompadour; não é nada senão um corpo curvilineo, chamativo, o raio que a parta. O importante é calçá-la de vermelho alto e vesti-la de negro curto. ‘Tá a ver Floriano? Quando o galã imagina partilhar de intimidades, antes vagamente sugeridas, ela enche-lhe o carão com a porta, intempestivamente. ‘Tá a ver toda a carga emocional que o gesto comporta? Ela explica-lhe assim sugestiva e concretamente que perdeu a partida e não há mais copas para ninguém. Fica o plano de um narigão rachado a oscilar na penumbra de um corredor fundo, sem fim. Não são precisas as palavras. As intimidades, frustradas ou não, não precisam de falatório. O Margarido dos diálogos, essa incontinente picareta, custa-nos uma resma.
Precisamos de qualquer coisa contida, em tom granítico, tipo Cassavetes, com incesto pelo meio, uma dúzia de personagens aparentemente sem sentido e sem vergonha, que se limitam, de quando em quando, a praguejar. Isto reforçado por um sopro musical: entram Ray Charles, Tony Bennett, talvez um pouco de Sinatra, na entremeada.
Duração de 30 minutos por episódio para 10 horas de emissão. Baixo custo, sobriedade e muito do que seria conveniente dizer por palavras fica calado. Objectividade. Tudo mora num enrugar de olho, num pestanejar cúmplice, num sacudir de nádegas. Fazer articular o estritamente essencial em tons sombrios, difusos, num jogo de preto e branco em jeito documental de anos 60, à mistura com meia dúzia de encenações e sepultamentos do tipo holocausto, que são sempre de muito bom efeito. Não há uma boa história enquanto a concebermos pelo prisma da coerência que não é precisa para nada. Situações de solavanco com flashes pelo meio, retrospectivas que não se chegam sequer a perceber porque não se dá tempo à digestão. A falta de nexo e de sentido usa-se. Por exemplo, nesta história há uma gaja de baixa factura com quem sempre se sonha acamar num sofisticado hotel de Miami. A nossa heroína. Não se sabe de onde veio, para onde vai, simplesmente não sabemos quem é; como o galã que não percebe onde está e porque está, vítima de um trauma lixado quando, pequenino, caiu do baloiço. Trocam-se sorrisos, diz-se não e diz-se sim, fornica-se, o cabeludo vai à casa de banho, revê-se no embaciado do espelho e saí sem palavras, apenas com um lacónico aceno lançado à amante que por fim se rendeu, consensualmente, sem necessidade do quebra ossos da Judiciária. Está a tomar notas disto? Bom: no final da acção, o feliz predador acabará por ser esmagado por um TIR carregado de feijão preto e a heroína sem nome, sem amor, sem lágrimas, sacudida pelos ventos do infortúnio, caminha por entre a densa nuvem de fumo do último charro e atira-se num silêncio sem fim pelo trilho de um destino que, em resumo, desconhecemos.
Há-de tratar-se de uma ficção modernaça, que deixa à excitada imaginação do telespectador a interpretação que lhe convém. Este tipo de enigma vive da força da imagem e nunca do estafado blá-blá com que vivemos a cada momento. Tudo é um acaso de encontros e desencontros, paixões e desamores envolvidos num espesso manto de nevoeiro onde as personagens não fazem necessariamente sentido, confundindo-se com o nada de um naco de vida, numa coreografia de insano desatino. É o que está a dar, Floriano. Agora, mande-me cá o guionista - esse palavroso Margarido - e o maluco dos orçamentos!