OU O LIVRO DAS HORAS DO DUQUE DE BERRY
EM DEFESA E ARGUMENTO DA CROMÁTICA MEDIEVAL .
Ainda há muita malta que pensa em cinzentos quando julga a Idade Média. Ainda há grandes cabeças que sonham uma medievalidade infernal de fogueiras e descolorida de cenografias. O que não falta é gente esperta a ignorar a revolução comercial (a mais importante de todas, a bem ver, porque criou a burguesia - mãe de todas as revoluções posteriores) ou a invenção da polifonia, sem a qual os nossos ouvidos por certo morreriam de sede. Mas a maior injustiça de todas é a de ignorar a génese das cores primárias. O mundo Medieval, como é encomendadeo por Jean Valois, o Magnífico, Duque de Berry e patrono das artes, neste seu livro das horas "Les Trés Riches Heures", é um verdadeiro triunfo do Pantone. Vibram ultravioletas e contrastes, incendeiam-se cenários e guarda-roupas, tudo salta cá para fora num festim de cores directas. Ou o dito duque tomava ácidos ou algo está errado: não consigo ver trevas, só vejo luz.
É claro que a percepção disfuncional é de razão relativamente prosaica: a malta confunde a Antiguidade Tardia com a Alta Idade Média, a malta reduz tudo à fogueira da Inquisição e ao fascismo dos príncipes, a malta não vê para além das pestes e das fomes e espalha-se ao comprido. A malta não percebe, ou ignora, que a Idade Média é ainda época do Império Romano (do Oriente), esse Bizâncio criativo e prolixo que enfeitava com fausto grande parte de um Mediterrâneo hiperactivo e capitalista.
Quem faz carreira académica à custa de uma visão conveniente e preguiçosa da história, devia ser obrigado a decorar as confissões de Santo Agostinho e as sumas de S. Tomás de Aquino. Devia perceber as diferenças na ética e na estética para depois não vir dizer que andámos qinze séculos com o Aristóteles às costas e sem imaginação nas carótidas. Não acredito nada na versão manhosa, embrulhada em embalagem de mercearia escolástica, que nos vendem os vendilhões da espistemologia.
É preciso, talvez, equacionar que essa tal tristonha, ditadora, tenebrosa e fundamentalmente estúpida Idade Média pariu aquilo a que hoje chamamos o Estado. Inventou a prensa e a imprensa, a novela, o relógio mecânico, a caravela, a fundição do ferro, o moinho de água. Aperfeiçou a óptica e a arquitectura, desenvolveu a bússola e o astrolábio, revolucionou a cartografia, fundou as primeiras universidades, canonizou a arte poética.
É preciso olhar para estas iluminuras do bom duque e ver, através delas, um outro mundo médio. Uma outra escala de tons.