quarta-feira, outubro 24, 2007

O Mito Mediterrânico

INTERROMPIDO POR APOLOGIAS À OPINIÃO DOMINANTE
E ILUSTRADO COM SUPER-HERÓIS DO ATLÂNTICO.
Em louvor de minha Mãe, Maria Adelaide Hasse, que combate pela discórdia.


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Lamento imenso mas Portugal não é um país mediterrânico. A maior parte das pessoas inteligentes que conheço não estão de acordo comigo - o que é uma pena, porque deviam - mas, peço desculpa, reitero e repito: Portugal é um país Atlântico.
Com os vales raros do Mediterrâneo podemos partilhar a vinha, mas o vinho é português. De Marrocos podemos ter a azeitona e a laranja e a paisagem algarvia mas não somos do Magrebe. Não somos berberes, nem tuaregues, nem o diabo. Somos romanos e visigodos, somos celtas e vândalos e suevos, somos judeus, persas e xiitas - também - mas não somos de Meca nem nos prometemos a Jerusalém.

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Eu tenho muita pena mas se ainda se dá por um muito vago sotaque mourisco, a verdade é que já não somos árabes há uns tempos e foi só até Coimbra, bem vistas as coisas. Podemos ter, para lá do Sado, a arquitectura clara e minimal da Europa helénica, mas não somos de lá e é claro que somos lentos e lerdos como os balcânicos, mas não somos dos Balcâs e se o alfabeto chegou pelo comerciante fenício, pelo escriba de Alexandria ou pelo governador de Pompeia, nem por isso somos sírios, egípcios ou etruscos, caramba! Somos mais o produto do esperma de saxões e visigodos, bárbaros do norte todos. Não pariram aqui as prostitutas da Babilónia, não chegaram cá os bulícios genéticos da Macedónia ou os maneirismos culturais de Constantinopla, um poucochinho só de Cartágo e da Grécia Clássica o mito iniciático da cidade de Lisboa, apenas. Veneza, Génova, Barcelona, que cagalhão deixaram pelas praias ocidentais? Zero: somos mais de Sagres, apesar de Joyce, somos mais de Dublin que qualquer grego, somos mais celtas, bretões e normandos e galegos e bascos, porque somos mais da costa norte, agreste em vez de temperamental. Dramática ao invés de trágica. Porque as nossas praias acabam em falésias em vez de montanhas, porque às ilhas não se chega de remos, porque o pastor não desce pelos mesmos caminhos, porque o peixe é diverso e outrossim a faina, porque não inventámos a literatura, porque lhe demos um banho salgado de alto mar e de alto risco: só à brisa fresca deste oceano se inventa a sardinha e se cozinha o petisco.

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Que me desculpem os pragmáticos e os funcionalistas, mas a mais sagrada cruz que o português tem de suportar, contente, é a da vigília do Atlântico. Estamos aqui alerta, estamos por aqui quietos a olhar o mar, num desafio de guarda nacional republicana. E esta vigília não é curta de milhas nem tresanda de civilizações: o horizonte é imenso, virgem e inescapável. Ulisses nunca poderia ser um herói português muito simplesmente porque a sua ambição máxima é a de voltar, vivo, a casa. Isto faz sentido num Mediterrâneo intenso, sobrepovoado de diferenças e problemas imobiliários, onde a casa de um homem é o seu castelo. Fernão Mendes Pinto, esse sim, é um herói português porque tem ambições oceânicas: a sua odisseia é a da peregrinação propriamente dita, a aventura desalmada, mal afortunada, lá do outro lado do esférico. O regresso é de somenos. Pero vaz de Caminha deixa-se ficar pelas arábias e Fernão de Magalhães entretém-se a circumnavegar até à morte. Até Camões, que amava Homero, só faz regressar o Bom do Vasco ao Canto penúltimo. Nenhum português se daria aos trabalhos insanos a que se submeteu Odisseu, porque a casa da mariquinhas não é um castelo, é uma plataforma de lançamento. Uma ideia argonauta própria de quem passa a vida com os olhos embalados pelas marés do Atlântico. O Grego sonha em voltar. O Português sonha em partir. É diferente. Toda a diferença de uma linha costeira: se tem o mar de frente ou um oceano por fronteira.

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Lamentavelmente, ainda há uns ilustres que concordam comigo, que me redimem desta solidão fenomenológica: Braudel, Pessoa, Almada, o meu querido Professor António Marques Beça, e mais uns indecisos como Oliveira Marques ou Eduardo Lourenço. Talvez porque equacionam que o Mediterrâneo rico e imperial, o Mediterrâneo dividido em riquezas, engarrafamento étnico de grandes interesses civilizacionais, acabou quando D. João II se decidiu a sonhar, já talvez enfadado daquele marinho horizonte de aventuras por cumprir. Ou apenas porque sabem que o clima, em Portugal, não é mediterrânico; que o relevo é antípoda; que a península ibérica está rodeada sobretudo pelo Oceano Atlântico e que Portugal é o país mais ocidental da Europa. Ou provavelmente porque intuem que o marinheiro português tem mais em comum com um lars viking do que com um sinbad bizantino. E todo o português é um marinheiro. Daí a deriva. Daí o nevoeiro.

A história de Portugal só fez sentido enquanto foi virada para o Atlântico. E quem não percebe isto é que é romântico.