sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Objecção

Morrem cedo quem os deuses amam? Treta.
Que o diga o velho cegueta
de Buenos Aires, bibliotecário do universo:
os deuses amavam-no e vice-verso.

É até lamentável que Rimbaud só tenha bebido
uma cerveja no inferno.
Com mais tempo para ser sofrido
reinventava o poema moderno.

O paneleirão do Proust foi-se aos cinquenta
mas deve ter ido contrariado.
Para chegar à página 35.480
até a mãe tinha traficado.

Ser-se jovem não é o mesmo que ser-se capaz.
Homero nunca foi rapaz
e é por isso que a literatura é feliz.
Já Joyce, se chegou a avô, foi porque quis!

Por isso, tu desculpa, Fernando, a contradição
e Mário - descansa em paz pela eternidade,
mas não estou em crer nessa religião
dos deuses da puberdade.

O teu querido Camões não se pode queixar.
Para quem andou com putas, piratas e reis
não foi nada mau sobrar
até aos cinquenta e seis.

Nem te serve de exemplo o Almada, cujo tesão
lhe durou mais que a memória.
Viveu o suficiente para aparecer na televisão
e isso é que é ficar para a história!

Tu próprio não sobreviveste por ai além
mas isso não é argumento, pensando bem
só talvez o Ricardo Reis tenha morrido de velhice
(a rábula do Saramago é uma aldrabice).

Acaso achas que te amaram os deuses especialmente
por causa dessa cirrose terminal?
"Encara a realidade de frente":
não foi a beber que chegaste a imortal.

E que outros monstros lindos sairiam da tua penada
se fosse mais fraco o absinto da Arcada?
Não te tinham feito mal nenhum ou prejudicado
mais uns anos de devaneio pelo Chiado.

Mais a mais o que é a morte
senão um momento de sorte?
Ninguém tem mérito nisso.

E a obra adolescente é como um dente postiço.