quarta-feira, novembro 05, 2008

Reentrada.



Olá a todos. Regresso com um exemplo feliz da minha infeliz profissão, o que é de duvidável agoiro, mas enfim, segui o danado do chicharro de poetas e políticos até ao fundo da vontade e deu nisto:

Trabalho em publicidade há cerca de 19 anos, ou seja, sou um gajo que já gravou spots de rádio de 20" durante 8 horas de corta aqui na bobine e mistura ali no PA e repete o take acolá e mais 14 takes ainda assim manhosos e um fartote de tecnologia do paleolítico inferior. Sou do tempo (gosto imenso desta expressão) em que o único sistema informático montado numa agência de publicidade servia invariavelmente o departamento financeiro. Sou do tempo (maravilha de meia frase) das repromasters e das fontes de letra em calquitos Mecanorma, e das maquetes feitas à pata literalmente à pata e lambidas pela língua literalmente lambidas e de ninguém conseguir respirar nos ateliers por causa do aerógrafo e dos ilustradores passarem metade do tempo das suas vidas a recortarem máscaras para a aerografia e dos copywriters confiarem com relutância ignorante os manuscritos a muito competentes dactilógrafas (palavra linda em vias de extinção), ou pior ainda dactilografarem os textos eles mesmos (eu mesmo!) com mil pragas de correctores disfuncionais e duas mil e trinta gralhas e ausências várias de senso comum na prosa comercial. Sou do tempo (estas palavras sorriem) em que uma arte final era um objecto físico, concreto, perfeito. Sou muito antigo nesta profissão adolescente, mas numa coisa sempre fui coerente e esta coisa sempre me fez uma confusão dos diabos: porque raio é que obrigavam a malta a criar jingles dissonantes e bandas sonoras chorosas e sonoplastias da maria cachucha, quando podíamos simplesmente meter no comercial uma malha rock qualquer, que estivesse a dar na altura? Em vez de pagar a músicos que têm que compor jingles para ganhar a vida, porque é que não vamos ao mercado daqueles que não pensaram na música para vender plástico mas para agradar às multidões? Não é para agradar às multidões (leia-se: mercados-alvo) que estamos aqui? Não é para disfarçar o plástico com emoções e estéticas? A publicidade não faz parte da cultura pop, caramba? E não se deve emaranhar nela, por deus? Este é um argumento que parece básico básico básico hoje, mas que era muito complicado complicado complicado de defender no Portugal Marketing de 1990, garanto-vos.
Bom, agora que a história me provou o protesto errante (cago na modéstia porque não é a vaidade que me conduz o post), agora que um gajo escolhe um musiquinha porreira do portfolio do top of the pops e depois é que escreve o comercial, agora que saltam para dentro dos ouvidos bandas magníficas e menos magníficas que foram lançadas por agências de publicidade, agora que as agências de publicidade fazem coisas magníficas e menos magníficas com bandas de primetime, agora que a cultura pop é uma cultura publicista e vice versa, agorinha mesmo que até temos o marketing viral e o mp quarenta mil e três e a falência dos direitos de autor e isso tudo e agora em que tudo isso se confunde e consome num eléctrodo de transcendência epistemológica; agora como nunca eu posso dizer: ainda bem que as coisas já não são como no meu tempo (adoro o som destas três últimas palavras).
Um bom exemplo de como um comercial pode viver completamente à custa de uma música que absolutamente não foi composta para servir qualquer intenção comercial é este que se segue.



Não discuto, claro, a impecável qualidade plástica e simbólica do registo cinematográfico (um clássico da produção americana), mas é a Vashti Bunyan que fica com a grossa fatia do mérito, não é? Pois vos digo que "Train Song", esta mesma melodia com que a Rebook nos introduz a presente época do Futebol Americano, foi escrita e gravada em 1966, por esta mesma menina hippie que se estava de todo nas tintas para quem afinal irá estar no Superbowl de 2009, ritual supremo e divino do império que hoje, dia 4 de Novembro, apresenta formalmente a sua queda. E vale mesmo a pena ouvir a música até ao fim do encanto.