domingo, agosto 07, 2011

No Reino de Artur

FICÇÃO CRIADA A PARTIR DOS HABITANTES DAS ESTÓRIAS DE ARTUR PAIXÃO

Floriano do Ó roda nos dedos a pastilha para a azia
Que traz na alma,
Enquanto o Homem das Massas
Disserta sobre conteúdos e audiências e emborca um escocês de 12 anos
Como se no guião do destino não houvesse amanhã.
Não fosse já bastante o martírio, entra p'lo escritório,
De litrada em punho no desabrigo da sua filosofia,
Malaquias da Saudade, cambaleando numa gritada infernal
Sobre a falência de Deus.
Atrás dele, como um paparazzi na perseguição do escândalo,
Vem o Rúben Perdigoto;
E atrás dele, como um inquisidor na urgência da fogueira,
Vem o padre Tristão.

Está instalado o bordel.

Floriano do Ó aguenta-se, cada vez mais pequenino
Na sua cadeira de tédio.
Para enganar o ruído trauteia para dentro,
Num inglês inventado, acordes sinceros:
Ai gotchiú ander mai sequine
Não há Francisco Alberto, como o Francisco Alberto Sinatra.

O escritório tem cinco lugares sentados, apenasmente
E já se dá pelo incómodo da polifonia abundante por metro quadrado
Quando chega Segismundo d'Ávila, artista plástico.
Traz o fumo do seu cigarro francês e a pretensão indefinida
De quem fuma tabaco estrangeiro.
Traz sarilhos e promete um pontapé bem acertado
No complexo genital de Rúben Perdigoto,
"Que é por causa das tosses, e da Hortense Luz,
Essa viúva impoluta que ousaste corromper,
Seminarista do diabo!"
Ao apelo das primeiras porradas, responde Anacleto Gadelhas,
Gorila de serviço e pistoleiro do pôr do sol,
Rompendo pela sala como o Jonh Calmeirão no seu cavalo branco,
Mas na verdade apeado de todo, até de bom senso e, acto contínuo,
Sai um pontapé na boca do Padre Tristão
E mais um estaladão na bochecha vermelhusca de Malaquias e

Fica a questão da metafísica mais que resolvida.

Floriano do Ó resiste, cada vez mais diminuto
No seu banquinho de sonhos.
Pesam-lhe os olhos interruptores
Enquanto entre o céu e o inferno
Se plasma a corrente alternada:
Agora nos braços da Gervásia, agora na tasca do Azambrino.

Uma coisa é certa no universo e essa coisa
É o caos e o caos tem uma gravidade própria e por isso
Atrai mais confusão ainda, numa espiral esfomeada de factores exponenciais.
Agora é a Anástácia dos Cogumelos,
A fiel e farta secretária do Homem das Massas
(E que lhe dá secretaria de todas as maneiras
Que se podem imaginar)
Que cai histericamente em cena, anunciando o apocalipse:
"Patrãozinho, patrãozinho, é melhor raspar-se que o meu Farturas
Vem aí para o matar!"
Nem tempo para o pânico, nem instante
Para a presença de espírito,
Eis o Farturas enraivecido que surge disparado
Pela janela panorâmica
(Com vista para o centro histórico de Mem Martins
E a ria da Bobadela).

É a cegada total.

Floriano do Ó sobrevive, cada vez mais ínfimo
No seu periclitante tripé de fantasias.
Vai-se encolhendo para dentro da orquestra
Do sono, numa beatitude de falsete:
Ai gotchiú dipe ine da arte ove mi
Não há Francisco Alberto, como o Francisco Alberto Sinatra.

Ainda assim, ia correndo a vida muito bem,
Entre facadas e desmaios, com sangue na alcatifa
E vinho tinto nos cortinados,
Com dentadas de última ceia e promessas
De "como-te vivo!",
Se não marcasse inesperada, infeliz e truculenta presença
O bom do Serafino Condesso
E toda a respectiva tropa testamentária, a saber:
Leopoldina - sua consorte,
Fagundes - seu primo,
Felismina da Vacaria - seu consolo,
Ti Timóteo - seu taberneiro e
Gamito da Pá - seu coveiro.
Claro está, é tudo apanhado no fogo cruzado
Dos cornos postos a nú e tirados a limpo e, claro está:

É o faroeste completo.

Floriano do Ó adormece, quântica silhueta
No abismo do seu trapézio de acrobata
Sinistrado. Mandem vir os palhaços!
E entre o circo, o sono e o sonho,
A corrente alternada continua a bombar:
Agora nos braços da Gervásia, agora na tasca do Azambrino.

E entre o circo, o sono e o sonho,
Há uma voz que vem do fundo do poço da vida:
Sou dipine mai arte déte iúar aparte ove mi.