sexta-feira, dezembro 09, 2011

O Natal do Sr. Alarcão

Por Artur Paixão


Vem aí o Natal, dia em que se celebra o nascimento de Jesus Cristo, festivamente, mas também, segundo consulta aturada, de qualquer individuo parido em qualquer dia do ano. Na minha cinzenta e ignorada biografia, que sou ninguém e nem sequer arrumo letras para fado vadio, não foi celebrado Natal nem mesmo por altura dos meus filhos, netos e bisnetos. Os sucessos ficaram-se pelos costumados cumprimentos da praxe, umas palmadinhas no costaço e uns sorrisos de simpatia e circunstância.
Nada de balões multicoloridos, espetadas do lombo, broas e rabanadas.
Diz-se que a Natividade assinala o parir de J. Cristo, da virgem Maria (!) ou de um Santo. Não sei nada desta intrigante trilogia, desta complicada associação que aliás, sempre me confundiu desde que há cerca de setenta anos atrás frequentava a catequese do padre Vitalino, embrulhado num bibe de quadradinhos verdes e pretos que detestava.
Assim como eu, os meus filhos, netos e bisnetos, os meus amorosos descendentes não tiveram festarolas e pançadas, espumantes e avinhados decentes. Tanto quanto sei o meu pai e meu avô não foram objecto desse tipo de festanças, parece-me que por força das severas tradições dum tetra-avô pouco dado a usanças que pusessem em perigoso desnorte as suas economias. Fraldas muitas e muito pó de talco para amenizar os ardores do rabito deve ter sido o que me foi dado quando me despejaram neste mundo chanfrado faz uma cabazada de Invernos.
Por mim sempre apreciei mais os arraiais de Santo António, em especial os de Alfama, talvez um tanto a escorregar para ritual pagão, no assar da sardinha com batata cozida com pele, pimentos e água pé e bailaricos bastante distantes do fervor devido ao bom do Sto. António; Alfama recheada de cantinhos, ruelas e travessinhas onde se beliscavam, animadamente, os traseiros de mulatinhas sorridentes e se acediam mais intimamente às rendinhas de algumas senhoras carentes, por entre os fumos das desilusões dos sessenta anos.
E depois, com os setenta e tal milhões que nasceram neste últimos anos, o planeta seria uma espécie de feira em festa permanente, cheio de balões a rebentar-nos nas trombas - um infatigável assar de entremeadas.
Ainda ontem, no andar de cima, nasceu mais um infeliz e o que ouvi foi um estrepitosa berraria e uma escaldante cacofonia de risos estridentes, fados, rumbas e, para meu completo desespero, o Quim Barreiros e o seu nefando fole.
Porém, a grande questão é que não sei como vou desencalhar-me este ano, caído como estou no fundo negro duma penúria total. Se a reforma não chega sequer para a ordem de despejo que não tarda aí, por via dos quatro ou cinco meses em atraso de rendas, como vou comprar as habituais peúgas, apitos, caramelos e toda essa tralha para a cambada, ainda mais quando estou a tentar reunir uns tostões para comprar umas alpargatas nos chineses para substituição dos destroçados chanatos que me arrastam as calosidades da planta dos pés pelo duro empedrado da calçada da Bica e o Pai Natal nas tintas.
Estoira-me a cachola na busca duma saída para esta desgraçada situação. E depois, aquela maldita consoada em que devo comparecer com o fatinho num fio, as mãos a abanar e um sorriso amarelo sem sequer os dentes que se foram em tempos já sem memória. E neste bocado de vazio, metido num buraco do caneco, passa no Chiado um desses bonecos de Carnaval de trunfa branca e bigode caído até ao saco testicular a gritar um ressonante “Hó Hó Hó", pago à hora, afora a barba, a gritar-me que é tempo de coisas boas e presentes para os meninos, mais para a botija que traz no bolso.
Arrasto-me no espelho deslumbrante das montras a rebentar para o que eles dizem, por entre odiosos néons TENHA UM NATAL FELIZ, UM NATAL DIFERENTE. Diferente, com certeza; feliz, uma merda. Leve agora e pague depois em suaves prestações. Levar, levava mas, quanto às prestações, nem as suavíssimas teriam nada de suave.
E depois, com este aspecto, sem cartões de crédito, sem referências nem, ao menos, um fiador creditado - perguntem ao meu senhorio - era mais do que certo que o insensível calmeirão da segurança me despejasse no olho da rua, rasgando-me provavelmente o resto das ceroulas que me restam.
Há-de haver uma solução. Parece-me viável intrometer-me numa dessas grandes superfícies onde a malta se entrechoca na busca dum consumismo desenfreado. Misturar-me nessa feliz multidão e enfiar, com descrição, as manápulas numas coisitas pequenas, coloridas e safar-me de peito cheio, sem passar pela caixa, como que distraído.
Não. Não tenho gâmbias nem frieza para me meter numa dessas, depois humilhado e exposto por razão duns cueiros e babetes para os miúdos, mesmo que ainda em saldo.
Pensei em apanhar uns tantos pombos sempre dependurados na varandita do casebre. Depená-los e assá-los no forno da padaria do Venâncio, um compincha da maior, por sinal padrinho do meu filhote mais velho. Não foi possível porque logo que os bicharocos me pressentiam, rumavam para os píncaros da capela mais próxima.
Outra ideia foi a de pedir ao Zeferino, famoso poeta de cantares populares aqui da Bica e meu habitual parceiro da sueca, que me alinhasse um poema de categoria, dramático, que metesse Cristo, Maria e cordeirinhos, para ler com emoção à cambada. Que não era muito do jeito, propondo-me uma desgarrada que ensaiaríamos na tasca do Careca onde ainda tenho uns créditos mal parados.
Ocorreu-me, em desespero, aplicar uma traulitada na cabaça dum desses policias de reconhecidos maus fígados, amacacados, da velha guarda que há por aqui à dúzia para me enjaularem, presumivelmente, até esmorecerem essas baboseiras do Natal mais a missa do Galo que é um frete de todo tamanho, tendo, antes, o cuidado de endereçar em tom dorido, um desses postais ilustrados alusivos à quadra de festas felizes e muita saúde, onde declarava que por motivos inesperados e de muita delicadeza, lamentava não estar presente como tanto desejava.
Pensando bem meti a ideia no saco dado que seria muito possível magoar a ossada em resultado dum retorno de bastonada, atendendo a que no momento do cometimento não teria ainda tomado o pequeno almoço e o grande - uma remota miragem. De construção débil, acabaria no hospital para aplicação de pensos rápidos e muito hematoma, distribuídos a esmo, sujeito depois a presença em Tribunal, que como sabemos despeja um malfeitorzeco no olho da rua num abrir e fechar de olhos, desde que não haja crime de sangue, o que infelizmente não seria o caso.
Subtrair as malinhas de velhas senhoras após operações junto dos Multibancos que não levantam peva e pelo contrário vão atulhar as máquinas de pagamentos com facturas da EDP do gás e da água sabe Deus com que sacrifício, que se está borrifando para estes detalhes, muito ocupado com as contas do Vaticano é coisa que não é do meu carácter.
Entretanto, a Santa Casa de Misericórdia recusou uma exposição muito bem elaborada, onde constavam até algumas citações da Constituição e balelas da Democracia, alegando que servia milhões de ensarilhados e que as verbas haviam caído drasticamente no que se refere a lotarias, totolotos e outras jogatinas bem como certas restrições impostas pelo Orçamento do Estado e que assim, as reduzidas verbas, não contemplavam donativos para as filhoses natalícias e outros assins de forma, aliás, muito comovente. Aproxima-se esse malfadado Dezembro e eu vazio de ideias e bolsos, quando, de súbito e enfim! me ocorre um processo infalível. Eureka!
Na Bica há uma série de transversais que descem no sentido do elevador. Há por ali umas passadeiras para peões com as marcadas desgastadas, pouco perceptíveis a olho nú, quanto mais para a malta carregada de dioptrias, com consultas agendadas no departamento desse tipo de zarolhos, míopes e ceguetas para daqui a pelo menos ano e meio. Ali a iluminação pública não vale um par de velas e a Câmara não liga nenhuma; os aceleras descem a abrir para evitar o mostrengo do elevador, a caminho do Papa Açorda e outros centros de gastronomia semelhantes.
Foi assim que saí do beco das Alforrecas, onde ainda assento a condenada ocupação apoiado na bengala do meu saudoso avô, caminhando, tropegamente, como convém a um sénior de vista curta, portador de deploráveis varizes há mais de vinte anos e pública consternação, metido no fatinho preto no fio, adornado duns óculos escuros para encher a encenação, e escolho uma geringonça de menos peso e aí estou eu, pisando a passadeira com a lentidão estudada, disposto a partir um par de costelas, pelo menos uma perna e algumas outras contusões avulsas.
Hospital de S. José ali à mão. Atropelamento por criminosa negligência - que o Seguro vai pagar - uma indemnização à vitima que deve pagar a substituição do fatinho preto no fio, dos chanatos rotos e de alguma roupa interior, que me vai permitir um justo repousar numa cama confortável; refeições decentes e muito amável carinho em volta.
A perna engessada e as costelas partidas e algumas intervenções de somenos não têm a menor importância. A cambada foi informada do lamentável acidente e apareceu em massa pelo dia da Natividade ou lá o que é. E ninguém esqueceu de me mimar com uma farta provisão de rabanadas salpicadas com canela, como tanto gosto.