sábado, julho 07, 2012

Horribilis.


POR ARTUR PAIXÃO


Quedava-se um espécime da insectologia do género insexual, esfregando as asinhas na margem do ribeirinho para saciar a sede quando se lhe aproxima, insidiosamente, um escaravelho e o traga de um só golpe. Nada de muito relevante visto que o insecto insexual não reproduz e assim não faz qualquer falta ao sistema ecológico. Ainda babado da degustação, aproxima-se, serpenteante, uma lagartixa XXL que os remove para o nunca satisfeito gástrico e logo depois um sardão que a seguia, rastejante, engole-os por um direito inquestionável da sua natureza, por imposição de sobrevivência.
Foi assim que o coelhinho que ferrava os dentitos ainda de leite nas suas primeiras cenouras arduamente escavadas na terra dura se sumiu, num ápice, nas entranhas da raposa; que um velho lobo descido da serrania, mastigou a raposa, o coelhito, e a título de fresca sobremesa, se banqueteou com as frescas cenouras. E é assim que a ciclópica fauna animal de dentuça assanhada se alimenta indiscriminadamente e sobrevive sem culpa formada. Trata-se, meramente, da primária razão de subsistir - sem regras ou condicionamentos estabelecidos - à saciedade geral, como nos casos em que machos e fêmeas adultos chacinam crias ainda em fase de aleitamento, por carência de bolsas alimentares mais à mão.
Também ao humano não repugna desmembrar, na Bairrada e não só, leitões bebés tostados a gosto, sem outras reticências que não seja a sua textura e churrasco de excelência. Aliás o canibalismo humano não tem nada de novo, tendo sido, frequentemente, primeira página, referindo dramáticas situações limite, abocando-se, nessas macabras situações, pais e mães e canídeos na desesperada ausência de alternativas, por pura e simples e aceitável questão de sobreviver a todo o custo e acima de todos os valores consagrados no ABC da civilidade e daquele humanismo mais rendido aos prazeres do bom bife de novilho mal passado, animado dum alegrete de alho fresco e um vinhão de casta.
Logo tudo o que aparentemente nasce, desde que seja mastigável, é para morrer sob a cruel degustação. É humanamente imperioso sacrificar a sogra, mas há que aproveitar-lhe os ossos para um caldinho com rabanete fatiado e um pé de hortelã, segundo receita que apanhei recentemente num livreco intitulado “Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes” dum tal J. Ferrabota, edição do Bulhosa.
Registe-se, talqualmente, em regime de sobrevivência, o canibalismo politico, de todos o que marca uma espantosa e não menos obscura odisseia, menos ilustrada por trilho de desatada sangueira, mas ainda assim destruidor, já que triturados são muitos personagens de fatinho azul e lacinho verde salpicado de bolinhas numa bacanal gastronómica oculta, sob uma mão cheia de digestivos, sem receita. (Creio que o Pulido Valente, embrulhado num meio sorriso cínico apreciaria este naco).
Há a excepção de calhaus não comestíveis (no meu caso também de brócolos) dos fundos das montanhas do Colorado, do aço da Ponte 25 de Abril,  de algum tipo de arame farpado e outros materiais não deglutíveis de pesquisa massuda. De resto, para sintetizar, nada escapa à gulosa trincadeira que move o rato ao elefante, o macho à fêmea, ou pelo contrário.
Convém referir que estes comentários mal dispostos, dum azedo notório, decorrem do facto da minha médica de família me ter projectado, no máximo, três meses de vida e nem mais um fim de semana, em nítido prejuízo do que tinha calendarizado para Outubro próximo em Pocinhos. Que sou um cadáver adiado notável, próprio para um estudo aturado para os sabichões da morgue mais próxima. E é inevitável que no Alto de S. João, se ainda por lá houver um buraco disponível e os senhores carniceiros encartados me deixarem uns restos de cartilagem e alguns pedacinhos do saco testicular, que os vermes se vão banquetear com o que restar, pouco.
A importância da sobrevivência.