POR MIKE BRAMBLE
Florian Henckel von Donnersmarck. Por acaso puro, vi – e
deleitei-me a ver – na passada quarta-feira um filme de um alemão. Pensado em
alemão. Escrito em alemão. Falado em alemão. Com actores alemães. Não tinha
essa necessidade, mas é também uma resposta a uma provocação do meu querido
amigo Paulo Paixão, que sabe tão quanto eu o que gosto de alguns prodígios que
a cultura produzida há vários séculos no actual território que se designa por
Alemanha tem dado à degustação do Homo Sapiens.
Florian Henckel von Donnersmarck, portanto. Dirigiu e escreveu o
guião, translúcido argumento de ‘Das Leben der Anderen’, traduzido para português
em versão dual na tituleira: ‘A(s) vida(s) dos outros’. Saiu para as salas e
anfiteatros em 2006, ano em que conseguiu ganhar em Hollywood o Óscar de melhor
fime estrangeiro.
Não vou contar a história do filme. É tecnicamente impossível e
seria um desperdício criminoso para os que tiverem a condescendência de me
lerem.
Mas peço desculpa por tomar a ousadia de realçar alguns detalhes.
Película em fotografia zincada a cinzento. Estamos em 1984, cinco anos antes da
queda do muro de Berlim. O personagem principal Georg Dreyman (Sebastian Koch),
dramaturgo, tem um amor intenso por uma actriz das luzes e da ribalta,
Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck). Na RDA de Honnecker, são perigosos desviantes.
Logo, a Stasi, excelsa organização propedêutica da moral e dos bons costumes,
decide intervir e capitalizar nos pecadilhos de cada um (tipo NKVD, Securitate,
CIA, FBI ou PIDE, vá lá). Coloca-os sob vigilância severa.
Entra em cena Hauptmann (capitão) Gerd Wiesler (Ulrich Muhe). E o
seu superior Oberstleutenant (tenente) Anton Grubitz (Ulrich Tukur). A história
é fascinante, não só porque está bem construída, bem filmada e superiormente
interpretada, mas porque, percebe-se, acima de tudo, que emanou de milhares,
dezenas de milhar de casos similares, humanos, pungentes, todavia já votados ao
esquecimento da História.
‘Das Leben der Anderen’ é um libelo contra o oblívio e a
obliteração. No irrepreensível ‘Diário Volúvel’ (Assírio & Alvim), um dos
craques actuais da literatura não encastrável e não castrada, Enrique
Vila-Matas, dedica-lhe uma merecida nota.
Num país de 17 milhões de habitantes, dizia-se que a percentagem
de ‘informadores’, ou espiões, ou escutas, ou bufos, terá oscilado entre 200
mil entes até um terço do universo demográfico daquela ficção dos Sovietes.
Florian Henckel von Donnersmarck coloca livros de Brecht nas mãos
de um dos esbirros, por vontade própria do mesmo, funcionário da soviética RDA.
Suprema ironia. E a mudança acelera. A personagem principal acaba por escrever
um livro em homenagem do seu perseguidor. Uma “Sonata para um Homem Bom”. Há
quem diga tratar-se de um dos livros, que apesar de nunca ter sido escrito, é dos
mais desejados dos leitores…Pois, pudera! Arriscaria também, eu incluso, que há
muitos invejosos que gostariam de ter escrito tal enredo oculto.
HGWXX/7 ficou gravado a fogo na minha memória! Muitos anos depois
de me perder com Kafka e Orwell, fiquei ainda a perceber, quão relevante poderá
ser uma nave de traço industrial munida de equipamentos e
funcionários-autómatos para descolar, em série, a vapor, cartas interceptadas
antes de chegar ao destino. Sem laivos de ficção, com personagens tão reais
como a própria vida, ou até mais.
Jacques Bonnet, no incisivo e delicioso ‘Bibliotecas Cheias de
Fantasmas’ (Quetzal), assume, convicto: “A personagem não envelheceu desde que
o seu criador lhe deu vida, ficou sempre igual para a eternidade”. Sublinha,
para não termos a veleidade de equívocos ou subterfúgios: “E ao pegar no (ou
nos) texto(s) em que ela aparece ficamos na posse de tudo o que o seu autor
quis que soubéssemos dos seus actos, das suas palavras e, por vezes, dos seus
pensamentos”.
‘Danke’, Florian e Ulrich Muhe, entre os demais contribuintes
desta obra primorosa. Além de serem o epítome desta máxima, também na designada
vida real. Depois do filme entrar em exibição, foram processados -
judicialmente, diga-se - pela ex-mulher do segundo. Segundo consta, essa
honorável senhora entregou à ditosa Stassi um ‘dossier’ de centenas de páginas a
incriminar o actor, amigo do realizador, mas não queria publicidade gratuita… Mais
um acto repugnável que originou uma obra de arte louvável!
Termino com uma citação de Proust, no incomensurável “Em Busca do
Tempo Perdido”, escrito um pouco antes (!) do filme em apreço: “o elemento
desconhecido nas vidas dos outros é como o da natureza, que cada nova
descoberta científica meramente reduz, sem o eliminar”.