terça-feira, dezembro 31, 2013

Jornal de Letras | Abril/Dezembro 2013


Porque Falham As Nações - Daron Acemoglu e James A. Robinson - Círculo de Leitores
A tese sobre o sucesso e o falhanço das nações, defendida por estes dois académicos do MIT e de Harvard (respectivamente),  assenta numa premissa de grande simplicidade: as nações triunfam quando apresentam estruturas inclusivas (leia-se, estruturas de estado de direito, democrático, semi-liberal, que premeiam o investimento e o mérito e que permitem a mobilidade social e a distribuição do rendimento pelas diversas classes sociais) e as nações que fracassam apresentam estruturas extractivas (repúblicas totalitárias, monarquias absolutistas, estados de feudo tribal, unidades geopolíticas não centralizadas, etc., cujos motores económicos são constituídos para promover os ganhos das elites). 
A tese é simpática e optimista e os autores dão-se a um exaustivo e sério trabalho de case study. Fiquei a saber muita coisa que não sabia, o que é sempre bom, mas, durante a leitura, a minha fraca cabeça estava sempre a interromper-me a concentração com objecções irritantes e básicas que não são satisfatoriamente resolvidas neste calhamaçozinho: O império romano era tudo menos inclusivo e triunfou largamente sobre o hemisfério ocidental durante, pelos menos, seis séculos. Os Hans da dinastia Ming eram de um absolutismo feroz e dominaram o outro lado do mundo durante três séculos. O império soviético, que assentava num esquema meramente extractivo, impôs a sua regra durante grande parte do século XX e a china contemporânea, primeiro motor de crescimento económico mundial, tem muito mais de extractivo que de inclusivo. Isto só para dar alguns exemplos. Podia estar aqui a noite toda.


Vida e Destino - Vassili Grossman - D. Quixote
Fabulosa aguarela tolstoiana sobre a batalha de Estalinegrado, este é o derradeiro épico da literatura russa do Século XX. Vassili Grossman, que era um jornalista de confiança do regime, foi mandado para a frente do Volga, para reportar o pesadelo dentro do enquadramento propagandístico estalinista. Quando voltou escreveu esta obra prima e deitou tudo a perder. O livro foi espartilhado e proibido, censurado e confiscado e esteve até, durante 20 anos, desaparecido. É uma coisa prodigiosa, com 850 páginas de extensão.


Obra Poética de Ruy Belo - Volume 1 - Editorial Presença
Sobre esta antologia de poemas do Ruy Belo, cuja leitura já tinha assinalado aqui e aqui no blog, resta-me só dizer o seguinte: a este homem, que inventou uma relação iniciática entre o deus católico e a poesia portuguesa, a terceira república não soube dar mais que o anonimato e um emprego de sobrevivência num obscuro liceu de província. Ruy Belo, que é um imortal, merecia mais que isso. Ruy Belo, que lutou contra o fascismo e viveu exilado da sua pátria por causa do seu compromisso com a liberdade, merecia mais do que isso. Mas, talvez apenas porque não era ateu, talvez apenas porque não era marxista, talvez apenas porque não era alinhado, foi deixado cair no esquecimento. Mas para génios destes, a posteridade guarda sempre o seu lugar. E se não é da moda destes tempos, o Ruy irá ser grande para outros séculos.

Morte ao Meio Dia

No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente tem saúde e assistência cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

O português paga calado cada prestação
Para banhos de sol nem casa se precisa
E cai-nos sobre os ombros quer a arma quer a sisa
e o colégio do ódio é a patriótica organização

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe
atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e o povo em vão requer
curvado o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer




Poesias Escolhidas de Púchkin - Editora Nova Fronteira
Esta antologia brasileira não tem um critério muito nítido e a poesia de Púchkin deve ser lida no seu contexto, mas, ainda assim, deu-me prazer a leitura deste corpo de poemas que transitam entre a ingenuidade do romantismo russo e a vibrante pena de um dos seus autores mais grandiloquentes.

Elegia

Dos anos loucos a alegria extinta
Ressaca vaga, faz que eu mal me sinta.
Mas, como o vinho, é o remorso meu
Que mais forte ficou, se envelheceu.

É triste minha estrada. E me anuncia
O mar ruim do porvir dor e agonia.
Mas não desejo, amigos meus, morrer;
Quero ser para pensar e sofrer.

E sei que há gozos para mim guardados
Entre aflições, desgostos e cuidados:
Inda a concórdia poderei cantar,
Sobre prantos fingidos triunfar,

E talvez com sorrir de despedida
Brilhe o amor no sol-pôr de minha vida.




Peito Grande, Ancas Largas - Mo Yan - Ulisseia
A operática história da família Shangguan compete com "Os Cisnes Selvagens" para o grande prémio da literatura dos horrores do Século XX chinês.
Mo Yan tem, indiscutivelmente, mais piada que Jung Chang, e a tragédia pula para comédia página sim, página sim. Logo no princípio, Shangguan Lu, a protagonista, está em trabalho de parto em simultâneo com a burra da família. A família ajuda a burra a parir enquanto Shangguan Lu se desenrasca sozinha. No fim, Jintong, o co-narrador e idiota de serviço, paradigma da inutilidade do homem perante a terrífica função cósmica, saco de pancadaria do destino, sobrevive a tudo e a todos. E levanta-se, desempoeirado, do chão da ignominia no projecto da próxima queda, pela enésima vez. É que a vida quer ser vivida. A vida quer continuar.


Entre os Assassinatos - Aravind Adiga - Editorial Presença
Muito provavelmente o mais etnográfico e o mais espalhafatosamente marxista dos livros de Aravind Adiga que já li, este fabuloso guia da cidade de Kittur, confusão terrível de credos e raças e castas e estrume da história, só confirma que este é daqueles romancistas que não têm medo de ninguém. Nem da sua própria sombra. Bravo.


António Gedeão - Poemas escolhidos - Antologia do autor - Edições João Sá da Costa
Esta não é a edição que me deu a conhecer o mestre. Mas como é uma antologia seleccionada pelo próprio Rómulo de Carvalho, peguei nela. Deve ser a centésima vez que li estes poemas. Estes poemas que são tanto dele, Rómulo, como meus. E se digo que são meus tanto como são dele, é porque fazem realmente parte da minha vida.


Poema do Fecho Éclair

Filipe II tinha um colar de oiro
tinha um colar de oiro com pedras
rubis.
Cingia a cintura com cinto de coiro,
com fivela de oiro,
olho de perdiz.

Comia num prato
de prata lavrada
girafa trufada,
rissóis de serpente.
O copo era um gomo
que em flor desabrocha,
de cristal de rocha
do mais transparente.

Andava nas salas
forradas de Arrás,
com panos por cima,
pela frente e por trás.
Tapetes flamengos,
combates de galos,
alões e podengos,
falcões e cavalos.

Dormia na cama
de prata maciça
com dossel de lhama
de franja roliça.
Na mesa do canto
vermelho damasco
a tíbia de um santo
guardada num frasco.

Foi dono da terra,
foi senhor do mundo,
nada lhe faltava,
Filipe Segundo.

Tinha oiro e prata,
pedras nunca vistas,
safira, topázios,
rubis, ametistas.

Tinha tudo, tudo
sem peso nem conta,
bragas de veludo,
peliças de lontra.

Um homem tão grande
tem tudo o que quer.

O que ele não tinha
era um fecho éclair.


Uma Carta para Garcia seguido de Sobre Livros e Anúncios - Elbert Hubbard - Padrões Culturais Editora
Este pequeno texto, escrito numa noite de fevereiro de 1899, faz parte da tradição literária ocidental porque é, segundo parece, o opúsculo mais lido da história da humanidade. Trata-se do elogio de um tal de Rowan a quem a Casa Branca, durante a guerra entre a Espanha e os Estados Unidos, atribuí a hercúlea tarefa de entregar uma carta urgente ao General Garcia, que liderava os rebeldes independentistas cubanos e que se encontrava incomunicável, fortificado algures nas montanhas inexpugnáveis da ilha do caribe. Três semanas depois, Rowan entrega a carta ao seu destinatário, depois de enfrentar um conjunto de dificuldades que Hubbard não especifica. O que interessa ao autor não é a aventura do herói mas o seu brio profissional. Rowan não faz perguntas nem se desfaz em desculpas: tem uma carta para entregar e vai a entregá-la. Sem reticências nem queixas sindicais. Sem medos nem existencialismos. Segue com a sua missão e é tudo. E é isso mesmo que faz dele um herói eterno. 
Se este opúsculo, espécie de anti-Bartleby - o personagem de Melville que recusava cumprir fosse que tarefa fosse - já era pertinente no fim do século XIX, agora então, no princípio deste preguiçoso e inquisitivo e reivindicativo século XXI, torna-se verdadeiramente num tesouro filosófico. O elogio de Rowan serve muito bem para pontapear e envergonhar a mentalidade reinante no mundo ocidental conteporâneo. São 8 páginas de ouro, seguidas de um outro breve texto também bastante interessante, que se interroga sobre a natureza do sucesso editorial, mistério que continua insondável, 120 anos depois.


John Milton - Paraíso Perdido - Cotovia
A expulsão do paraíso e a implosão do conceito onírico subjacente ao Éden numa das obras fundamentais da literatura ocidental (Pessoa defendia a superioridade de Milton em relação a Shakespeare e Borges propunha Milton como o Homero anglo-saxão), foi muito mal tratada pela tradução incompreensivelmente abstrusa de Daniel Jonas. 
Para não estar aqui a perder tempo com a mediocridade alheia, dou só um exemplo da esquizofrenia que se manifesta logo na tradução do primeiro verso. Para Daniel Jonas, a melhor forma de traduzir "Of Man's first disobedience" é isto: "Da rebelia adâmica". Hã? A sério? Mas porquê? Ainda se podia tolerar a metamorfose maluca se o tradutor procurasse uma conformidade formal, mas como não a consegue de todo, mas como nem parece que esteja preocupado com isso, fica só a frustração de uma oportunidade perdida.
A Cotovia tem vindo a desenvolver um trabalho absolutamente notável na publicação dos clássicos da literatura ocidental e, até por isso, não se percebe lá muito bem como é que podem acontecer desastres destes.



Poesia Simbolista Portuguesa - Editorial Comunicação
Não sendo de todo a minha escola preferida, dediquei alguma atenção a esta antologia, embora a própria classificação, tão elástica que abrange autores como Cesário Verde e Teixeira de Pascoaes, seja de critério bastante discutível. Talvez por isso, e também por nunca ter simpatizado grandemente com os Camilo Pessanha e os António Nobre deste mundo, não foi esta leitura tão aprazível como por certo seria a leitura isolada de alguns grandes da literatura portuguesa que aqui estão inclusos, no meio do ruído simbolista.




O Livro do Ano - Afonso Cruz - Alfaguara
Líndissimo trabalho naiv do prolixo e prolífico Afonso Cruz. Onde podemos encontrar, pela voz doce de uma menina poeta, coisas lindíssimas assim: "A terra é o céu das raízes, não é?"


Espelhos que vivem uns dos outros - Jenaro Talens - Livraria Camões
A obra poética de Jenaro Talens combina elementos de radicalidade formal com um certo diletantismo temático que, sendo encantador, acaba por deixar muito pouco património no imaginário do leitor. Fiquei sem saber o que pensar. Acho que tenho que voltar a este livro.


Paisagens Originais - Olivier Rolin - Edições Asa
O Autor de "O Bar da Ressaca" entra aqui no campo do ensaio, com uma viagem bem interessante aos cenários de infância de Hemingway, Nabokov, Borges, Michaux e Kawabata. É tudo muito bem escrito, muito bem pensado, muito agradável. Acontece apenas que, ao contrário do que parece ser a intenção inicial do autor, os diferentes cenários não se cruzam, não geram frutos entre si, não encontram comunhão. E é uma pena, porque de resto, o livro recomenda-se.