"Ha desinfectantes para limpar as canalizações. Mas para a imundície destas almas não existe desinfectante moral."
Jean Seul de Méluret (Fernando Pessoa) . Os Senhores Proxenetas
Não frequento redes sociais para lém dos blogs e do Youtube, mas chega-me de fonte fidedigna a informação que a deliciosa crónica que João Pedro George publicou a semana passada no Observador foi agredida loucamente pelos indignados deste país (somos um país de pessoas indignadas).
Eu também estou indignado claro, na inescapável medida em que sou tão português como a generalidade dos portugueses, mas, comparativamente, a minha indignação está de pernas para o ar. Eu estou indignado porque as pessoas que não encontraram, no texto luminoso, profundamente literário e de grande seriedade jornalística de João Pedro George, mais que razões para se sentirem ofendidas, não deviam ser possuidoras de megafones mediáticos que propaguem a sua mais profunda ignorância de tudo, a sua mais assustadora cultura do zero.
Hoje, em Portugal, não podemos dizer certas coisas do romancista a, b ou c porque parece que os romancistas são uns monstros sagrados intocáveis porque escrevem romances. Não há nada de especial numa pessoas que escreve romances. Para se ser especial a escrever romances é preciso escrevê-los com excelência técnica e criativa. E saber defendê-los perante a crítica. Neste sentido, será porventura útil conseguir articular sobre aquilo que se escreve. O texto de JPG tenta apenasmente demonstrar - e depois ridicularizar - a leviendade com que os autores portugueses articulam o seu trabalho. Qual é o mal disto? Nenhum e pelo contrário: isto é bastante higiénico.
Mas ainda que não fosse de utilidade óbvia, pertinência clara e salubridade invulgar, o divertidíssimo texto de JPG continuaria a ser divertido e continuaria a ser virtuoso. É talvez útil regressar atrás, no espaço-tempo da literatura portuguesa, para percebermos que a vitalidade criativa advém de uma fundamental atitude de manifesto, de ruptura, de violência sintática e semântica sobre um determinado status quo. Vou só dar dois exemplos: a Geração de 70 e a geração do Orpheu. A quem seria hoje permitido, sem o esmagamento da indignação, escrever algo como "As Farpas"? E como poderia José de Almada Negreiros, o grande, redigir algo parecido com o "Manifesto Anti-Dantas" se já existisse na altura um mecanismo de censura grupal e conformismo social como o Facebook? E que aconteceria a Fernando Pessoa depois de redigir pérolas modernistas altamente agressivas e até insultuosas como o "Ultimatum" ou o "Aviso Por Causa Da Moral"? Seria literalmente passado a ferro por esta gente grotesca, espécie de rebanho de beatas aflitas, histericamente acometidas de um impulso fascista que só se percebe no entendimento da sua própria miséria moral e cultural.
Felizmente, há ainda, mesmo que residuais, espaços de liberdade neste país. E gente inteligente e desassombrada e corajosa que diz o que tem a dizer sem medos nem complexos. Gente como João Pedro George. Quanto aos outros - os censores de zuckerberg, os alienados do bem e do mal, os empertigados da escolástica do costume, os moralistas de algibeira - podem ir bardamerda. Não são eles que fazem História. Não são eles que elevam os povos e as culturas. Não são eles que levantam a civilização. Não são eles que inventam a reinventam a arte.
E uma última nota: só um boi cego-surdo é que não repara que as afirmações de Lobo Antunes sobre a sua obra são invariavelmente ridículas e vazias de conteúdo. E não é de agora. O senhor não diz nem nunca disse nada de jeito. As entrevistas que lhe fazem são sobretudo momentos de glorificação do autor. Mas jamais um momento de esclarecimento para o leitor. Ou de profundidade para o crítico.