A segunda obra que leio deste rapaz, é também outra obra-prima. Jerusalém é um romance intrincado, mas parcimonioso, multi-dimensional mas construído por vozes interiores; discreto mas febril, que se desenvolve quase no domínio do inconsciente, sem perder uma contenção essencial que preside ao ritmo dos parágrafos. As personagens vivem sobrepostas numa falsa oposição, que se dilui no sentido de um anti-climax que é previsível sem ser vulgar. Está tudo muito bem calibrado, nesta novela. Muito bem medido. Muito bem escrito.
Responsabilidade e Juízo - Hanna Arendt - Dom Quixote
Edição que reúne vários ensaios e conferências da uma das figuras maiores do pensamento do pós-guerra, e cujo perfil já tracei (mais ou menos) aqui. A análise de Arendt à temática do mal, e como lidar filosófica e juridicamente com a sua presença imanente no decurso da hitória, continua absolutamente contemporânea e deve ser revisitada.
A Casa das Rosas - de Andréa Zamorano - Quetzal
Se há mania literária que tem perdurado dentro e fora da sua geografia, essa mania é o realismo mágico. E esta primeira novela de Andréa Zamorano, brasileira de origem, portuguesa de estado civil, tem quanto baste desse infindável filão: uma ditadura militar, um patriarca poderoso que oscila entre a loucura e a vilania, um fiel e nobre jardineiro, um poeta que irá ser personagem do Roberto Bolano, uma heroína que fala com saguis. E a morte, como elemento estruturante da narrativa.
Ainda assim, há qualquer coisa de insólito neste breve romance. Há qualquer coisa
que não é Laura Esquivel nem Isabel Allende nem nada que se pareça. Que
prende e arrepia. Há aqui, nestas páginas, qualquer coisa de sinistro, que dá comichão e levanta o cabelo.
É
que Andréa Zamorano vai buscar a Córtazar e a Borges, mais que a outros
mestres, mais óbvios, da literatura sul-americana, as referências para
uma arquitectura elíptica e surpreendente, onde encontra a sua
identidade de contadora de histórias. A essa virtude, soma a autora um
óbvio talento para discursos interiores mais ou menos caledescópicos,
mais ou menos fantasmagóricos, que exercem sobre o leitor uma espécie de
exorcismo.
E se podemos, aqui e ali, questionar a direcção em que
somos movidos por Andréa Zamorano, a verdade é que as últimas 20
páginas do seu iniciático romance são verdadeiramente alucinantes e dão
direito à revelação de um cadáver emparedado e à antecipação do grande
terramoto da Cidade do México.
Não está nada mal, para começar.História da Filosofia, Os filósofos e os Textos - 3º Volume: Filosofia Contemporânea - Edições 70
Terminei finalmente a minha terceira (ou quarta?) ronda por esta história da filosofia. Este é, claro, o volume mais difícil dos 3, porque os filósofos contemporâneos não facilitam nada no que respeita à densidade das doutrinas, embora fiquem, regra geral, a milhas dos seus predecessores. Vou enconstar estes 3 volumes por uns anos na respectiva estante, até porque entretanto já descobri uma história da filosofia bem mais interessante - a de Will Durant - de que darei testemunho mais à frente no tempo.
Alejo Carpentier - Concerto Barroco - Antígona
Um exemplo acabado de como um escritor com talento para dar e vender (basta ler as primeiras duas ou três páginas do romance para percebermos isso) se deixa estatelar, rapidamente, com estrondo e espalhafato, no asfalto gorduroso e fatal de uma espécie de manifesto marxista sem pés nem cabeça, na pior tradição da literatura cubana arregimentada a um castrismo vulgar e entediante. A crítica diz que Alexandro Carpentier é um percursor do realismo mágico. O autor disse que esta obra era a sua "suma teológica". Eu desisti a meio, o que é muito raro e - por isso - muito significativo.
As Leis Fundamentais da Estupidez Humana - Carlo Cipolla - Padrões Culturais Editora
Brilhante e sintético tratado que explica lindamente o que é um estúpido e porque é que existem tantos e como é quase impossível às pessoas que não são estúpidas viverem sem o perigoso e altamente destrutivo impacto das que o são. O ensaio, que assume algum rigor científico (dentro daquilo que é possível em ciências sociais) demonstra e postula cinco leis fundamentais, a saber:
1 - Cada um de nós subestima sempre e inevitavelmente o número de indivíduos estúpidos em circulação.
2 - A probabilidade de uma pessoa ser estúpida é independente de qualquer outra característica dessa mesma pessoa.
3 - Uma pessoa estúpida é aquela que causa dano a outra pessoa ou grupo de pessoas, sem que disso resulte alguma vantagem para si, ou podendo até vir a sofrer um prejuízo.
4 - As pessoas não estúpidas desvalorizam sempre o potencial nocivo das pessoas estúpidas. Em particular, os não estúpidos esquecem-se constantemente que, em qualqer momento, lugar e situação, tratar e / ou associar-se com indivíduos estúpidos revela-se infalivelmente um erro que se paga muito caro.
5 - A pessoa estúpida é o tipo de pessoa mais perigosa que existe.
Os Filósofos e o Amor - Aude Lancelin e Marie Lemonnier - Tinta da China
"O amor é o mal."
Arthur Schopenhauer
"Um filósofo casado pertence à comédia."
Friederich Nietzsche
O amor é o tema maldito da filosofia. Com raras excepções, os filósofos têm achado, nos dois mil e quinhentos anos que já conta a arte do pensamento especulativo, que a razão pela qual as mulheres e os homens se entregam passional e espalhafatosamente uns aos outros constitui um assunto menor. Vá-se lá saber porquê. Não fora a intensidade dessa volúpia, tudo seria bastante diferente do que é (inclusivamente a demografia), mas, de Tales de Mileto a Ludwig Wittgenstein, é díficil encontrar obra que se deixe sensibilizar pelas regras da atracção humana.
Apesar deste triste
facto - ou até por causa dele - Aude Lancelin e Marie Lemmonnier
tiveram a ousadia de ir à procura do amor na filosofia, e - é preciso
dizê-lo - fizeram-no com brilhantismo e erudição.
"Os Filósofos e o Amor", uma edição de 2015 da Tinta da China
com tradução (excelente) de Carlos Vaz Marques e prefácio de Eduardo
Lourenço, é um livrinho fascinante. Fascinante, para já, por causa do
registo filológico adoptado pelas autoras. Não é todos os dias que lemos
textos dedicados à filosofia que utilizem uma nomenclatura assim
desassombrada: enquanto Nietzsche é um "astronauta do espírito",
Schopenhauer é um "lobisomem do líbido". Kirkegaard tem um "esqueleto
semi-marreco" e é um "verdadeiro anti-viagra". Montaigne é "felpudo como um macaco e careca como um ovo" e ficamos
sem saber o que fazer à informação de que o seu pénis não era
especialmente longo. Nem especialmente grosso. Há muitas páginas de
autêntica comédia neste seríssimo tratado, que fazem da sua leitura uma
entretida mistura de sabedoria e cuscovilhice.
As
autoras são,
como era expectável, vítimas do escasso espólio existente, pela razão
apontada no primeiro parágrafo, mas não se atrapalham: se os filósofos
eleitos dedicaram ao amor menos páginas do que seria conveniente, as
suas aventuras e desventuras amorosas, as suas miseráveis, patéticas e
gloriosas vidas, dão pano para mangas. Acresce que a erudição das duas
académicas francesas, devidamente complementada por um irreverente
trabalho de pesquisa bibliográfica, acabam por contornar as dificuldades
iniciais de forma a que o leitor se depare com um trabalho enxuto, mas
repleto de substância; e de originalidade inquestionável.
O
ensaio selecciona dez filósofos (na verdade são treze, porque Platão
implica Sócrates, Heidegger traz Arendt pelo braço e Sartre não passa
sem Beauvoir), cujas biografias são cruzadas com aquilo que escreveram
sobre o tema, mesmo - outra vez - quando escreveram pouco, embora o
critério esteja longe de ser aleatório: os heróis escolhidos são talvez
aqueles que mais valorizaram - ou desvalorizaram - o amor. E aqui surge
uma nova dificuldade. É que, muitos destes filósofos, e principalmente
Lucrécio, Mantaigne, Schopenhauer, Kierkegaard e, claro, Niietzsche,
apresentam, na obra e na vida, uma concepção mais ou menos terrorista do
amor romântico. Nalguns casos, são verdadeiros nemessis do envolvimento
passional, noutros, autênticos campeões do líbido pelo líbido. E se, em
Platão, o amor é uma espécie de elevador da glória que nos transporta
para o belo absoluto e a eternidade das ideias, já em Montaigne lemos um
indisfarçável libertinismo suportado eticamente por uma abordagem
céptica do romance, em Schopenhauer surpreende-nos o nojo existencial
pelo coito e e em Kirkegaard a insuportável recusa da felicidade amorosa.
Assim, quando chegamos a Nietzsche, já estamos psicologicamente
preparados para o espectáculo circense que nos é oferecido: o niilista
rei de todos os cépticos-anti-românticos da história universal cai com
estrondo no rídiculo de se apaixonar louca e platonicamente por uma
rapariguinha de dezoito anos.
Isto
já para não falar no desafio tremendo que é incluir Immanuel Kant num
ensaio sobre o amor. Kant amava, talvez, o campanário da vila de Königsberg,
a biblioteca local e um ideário iniciático e puritano que fosse
determinar o comportamento moral dos homens para toda a posteridade. Mas pouco mais. Em
certo sentido, é um homem sem biografia. Ainda assim, as duas detectives
que nos guiam por este contínuo do espaço-tempo venusiano conseguem
encontrar na obra e na vida do austero idealista alemão alguns detalhes
surpreendentes e alguns vestígios de paixão mundana, missão que qualquer
pessoa de bom senso consideraria - à partida - absolutamente
impossível.
A
propósito de milagres, há um outro nestas páginas: o que salva Jean
Paul Sartre da sua impenitente infelidade. E Simone de Beauvoir da sua
triste sina.
Encontramos enfim alguma redenção para esta
intensa e divertida torrente de factos biográficos e confissões mais ou
menos folclóricas, finalmente libertos do pudor de uns e do cinismo de
outros, na conclusão partilhada por Stendhal, Proust e Sartre, de que o
amor é mais que o amor, é também essa célebre "vontade de poder", de
que falam todos os filósofos desde Nietzche: "O amor não pode resumir-se ao simples facto de se possuir uma mulher,
mas visa, através da mulher, a conquista do mundo inteiro".
Convenhamos:
é difícil terminar de forma mais coerente, universalista e...
romântica. Afinal, o amor e a filosofia deviam dar-se melhor. É através
de um que se resolve a outra.
O Sorriso Aos Pés da Escada - Henry Miller - Padrões Culturais Editora Deprimente e banal conto escrito em hora de inspiração zero por um dos mais carismáticos novelistas americanos do século XX. O protagonista é um palhaço em busca de um sentido para a vida. Se soubesse o que sei hoje, não tinha pegado nisto. A edição da Padrões Culturais é ainda por cima aviltada por umas ilustrações muito horríveis de Frederico Rocha, que são a cereja em cima de um bolo impróprio para consumo. BAH!