Crónica publicada a 19/06/15 |
“Antes do Destino” (Rui Costa Pinto Edições – 2015) é um exemplo especialmente gritante desta triste sina. Especialmente gritante porque o autor não merecia o anacrónico objecto gráfico de que foi vítima: este é o primeiro livro de poemas de Márcio Alves Candoso, mas até podia ser o último. Chama-se Antes do Destino, mas podia chamar-se Depois. O autor não é propriamente um rookie e a sua poesia, valente e sonora, substancial e épica, matura e pensada, a sua poesia massacrada por décadas de revisões e cortes e acréscimos e alterações de humor, a sua poesia heróica precisava de um outro palco de papel. Adiante.
É preciso dizer que Márcio Alves Candoso não está interessado no poema pelo poema. Cada estrofe tem não sei quantas significações de forma e de conteúdo. Recusando a elipse e o vácuo, os versos correm multidimensionalmente em linhas rectas como setas e em todas as direcções da sintaxe e da semântica, na corrente eléctrica de alta voltagem que alimenta um existencialismo reinventado a partir do tudo e do nada.
Mostraremos as mamas, sim, filha,
e dormiremos tempos vastos nos colchões gastos
com totobolas sem prémio.
O autor “descasca o pessegueiro” da lírica com uma má disposição carismática e sem medo de ninguém. Entre o poeta e os outros cria-se um elo maldito de desdém apaixonado, uma vontade de vomitar que chega com mais ou menos rapidez ao orgasmo redentor, onde o entendimento é possível, mas não a concórdia. Há aqui uma veemência que precisa de muitos anos de vida e de bastantes porradas para ser verdadeira – e há muita verdade nestas páginas.
Que cretinosa, malcheirosa pieguice
messiânica vai chegar para abater esta vontade
com que, rubros os campos, astralmente vamos
expandir látimos de glória onde se arregalam
olhos de colossal conquista?
Manifestando-se num eixo instável e incongruente que percorre o trajecto infinito que vai de Horácio a Ginsberg, “Antes do Destino” é um livro quase enciclopédico. Carregado até mais não de referências e cruzamentos de referências, excessivamente epigrafado, com citações e dedicatórias a cada passo (outro aspecto em que se nota a ausência de um trabalho editorial mais rigoroso), brilhantemente prefaciado por Bruno Oliveira Santos (cujo texto introdutório à poesia de Márcio Alves Candoso levará invariavelmente o crítico ao abismo da redundância), este é um trabalho violento e generoso, quase obsceno, porque exige do leitor uma honestidade insustentável e demanda, do mundo, uma obediência que transgride os mais tolerantes protocolos.
Pára os pseudónimos e os tolos fingimentos
que chegou o tempo de beijar-te as coxas!
Para Márcio Alves Candoso, o amor é um tempo de cólera. Uma demanda utópica. E o sexo transforma-se num conto de fadas para maiores de 18 anos.
Quando Carolina do Mónaco perdeu os três assim,
como outra qualquer,
Cinderela deixou de correr ansiosa ao toque da meia noite.
Raramente encontramos, nos escaparates contemporâneos, poesia que pese tanto: gorda sem gorduras, anafada de misérias, alegre de angústias, eloquente de singularidades lexicais, mostra de versos raivosos e meias histórias arrancadas a ferros da existência, essa tágide-meretriz-mãe que vai parir, inevitavelmente, estrofes sónicas para ler aos gritos e com lágrimas.
E vim do chão, do sol, para rasgar a cabeça
com navetes que nos estalam a porcaria dos nervos.
E vim bêbado e límpido por dentro atrás do novo quinhão de raiva
que é ser nada fora da poesia.
(…) Vós sois folhas mortas
Eu venho da raíz e rumo às copas
às cúpulas e às cópulas
que não entendereis nunca!
O som e o ritmo são importantes, urgentes, para o poeta (como em Europa, um poema que reinventa o usa da língua e o destino de um continente), mas são apenas um meio para um fim. E o fim é a literatura, claro. A poesia de Márcio Alves Candoso não nasceu para ser coroada de louros, elevada pelos críticos ou glorificada pela posteridade. A sua missão é ser escrita e ser lida. Tudo o mais é menos que o desejo de regressar à erudição do zero absoluto:
Ah, quem me dera ser analfabeto!