Vou mais depressa que o poeta, que ia devagar, pela estrada de Sintra.
Vou mais depressa mas não tenho pressa:
quero que a estrada se eternize no espaço e no tempo;
quero-a infindável e alucinante.
Vou a acelerar pela estrada de Sintra, mas não quero chegar a Sintra.
Não quero chegar a lado nenhum
porque querer chegar a algum lado é um mito.
Vou a acelerar pela estrada de Sintra e tudo o que espero da estrada
e tudo o que espero de Sintra
e tudo o que espero da vida
é morrer assim, veloz, bombástico, supersónico como um astronauta,
disparado como uma seta em direcção a nenhures,
embalado pelo malicioso ronronar do motor,
travando o menos possível nas curvas,
acelerando o mais possível nas rectas,
senhor de 230 cavalos enlouquecidos, embestados, bestiais!;
piloto de cilindros enfurecidos na grande combustão de tudo!;
soltando ruídos e faíscas e raters e explosões!;
até que a velocidade chegue a vertigem e a vertigem seja Deus.
Vou a acelerar pela estrada de Sintra.
Por sorte não vou com um Chevrolet, como o poeta,
Por sorte não guio um automóvel emprestado, como o poeta,
mas, como ele, vou ao luar e ao sonho pela estrada deserta
e outrossim sozinho guio, mas depressa porque não tenho pressa;
mas depressa porque ninguém me espera;
mas depressa porque eu não espero por ninguém;
mas depressa porque conduzo a emergência de não ter urgências
e a velocidade de não ter uma agenda.
Sim, não estou propriamente a reflectir sobre a paisagem
e a vida que levam as pessoas que habitam os casebres à beira da estrada
não me interessa nada.
Enquanto o asfalto rugoso, a borracha aderente e a electrónica alemã
seguram o automóvel às leis de Newton,
não tenho vagar para fazer filosofia.
Vou a acelerar pela estrada de Sintra porque sim,
porque posso, porque quero, porque estou vivo, porque vou morrer.
O acelerador é um fim em si mesmo
e o estômago colado às costas, as costas coladas ao assento,
o assento colado à carroçaria, a carroçaria colada ao chassis
e o chassis colado à estrada dão razão, dão sentido ao universo!
Vou a acelerar pela estrada de Sintra, e vou muito mais depressa
do que o poeta ia depressa quando finalmente se cansou de guiar devagar.
O poeta ia enfim depressa por tédio de ter vindo devagar
e eu venho depressa desde sempre para não me aborrecer.
Vou a acelerar pela Estrada de Sintra
e o meu coração dispara para as sete mil rotações por minuto
e a minha alma é fricção, binário, força e glória mecânica de pistões!
Vou a acelerar pela Estrada de Sintra
sem pressa pela estrada deserta,
sem travões pela serra que amanhece
ao som que faço com os nervos
e os cavalos.
________________________________________
Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...
Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!
À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.
À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?
Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?
Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.
Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...
Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!
À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.
À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?
Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?
Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.
Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...
Álvaro de Campos